São Francisco de Sales e Santa Margarida Maria na Encíclica DILEXIT NOS do Papa Francisco (textos)
O Papa Francisco publicou sua nova Encíclica com o título "Dilexit Nos" que significa "Amou-nos", sobre o amor humano e divino do Sagrado Coração de Jesus. Esta Carta Encíclica esta inserida nas celebrações em andamento pelos 350 anos da primeira manifestação do Sagrado Coração de Jesus a Santa Margarida Maria Alacoque, em 27 de dezembro de 1673, e que se encerrarão em 27 de junho de 2025.
Ao discorrer sobre a Devoção ao Sagrda Coração, o Papa traz presente a Espiritualidade Salesiana na doutrina de São Francisco de Sales e nos relatos de Santa Margarida Maria Alacoque, Irmã da Visitação de Santa Maria.
Confira os parágrafos na íntegra.
São Francisco de Sales
114. Nos tempos modernos,
destaca-se o contributo de São Francisco de Sales. Ele contemplou muitas vezes
o Coração aberto de Cristo, que nos convida a habitar dentro dele numa relação
pessoal de amor, na qual se iluminam os mistérios da vida. Podemos ver no
pensamento deste santo doutor como, face a uma moral rigorista ou a uma
religiosidade de mero cumprimento de obrigações, o Coração de Cristo lhe
aparece como um apelo à plena confiança na ação misteriosa da sua graça. É
assim que ele se exprime na sua proposta à baronesa de Chantal: «É para mim bem
claro que não permaneceremos mais em nós mesmos [...] habitaremos para sempre no
lado trespassado do Salvador, pois sem ele não só não podemos, mas, mesmo que
pudéssemos, não quereríamos fazer nada» [103].
115. Para ele, a devoção
estava longe de se tornar uma forma de superstição ou uma objetivação indevida
da graça, porque significava um convite a uma relação pessoal em que cada um se
sente único perante Cristo, reconhecido na sua realidade irrepetível, pensado
por Cristo e valorizado de forma direta e exclusiva: «Este coração tão adorável
e tão amável do nosso Mestre, todo ardente de amor por nós, um coração no qual
veremos escritos todos os nossos nomes [...]. Certamente isto é um tema de
grande consolação: Que sejamos tão amados por Nosso Senhor a ponto de nos levar
sempre no seu Coração» [104]. Este nome próprio escrito no Coração de Cristo
foi o modo como São Francisco de Sales procurou simbolizar até onde o amor de
Cristo por cada um não é abstrato ou genérico, mas implica uma personalização
em que o fiel se sente valorizado e reconhecido em si mesmo: «Quão belo é este
Céu, agora que o Salvador é como um sol e o seu peito como uma fonte de amor da
qual os bem-aventurados bebem à vontade! Cada um vai lá dentro olhar e vê o seu
nome escrito em caracteres de amor, que só o amor sabe ler e que só o amor ali
gravou. Ah, Deus! Minha querida filha, não estarão lá os nossos? Estarão, sem
dúvida; pois, embora o nosso coração não tenha amor, tem o desejo do amor e o
princípio do amor» [105].
116. Ele considerava esta
experiência tão fundamental para uma vida espiritual que colocava esta convicção
entre as grandes verdades da fé: «Sim, minha querida Filha, Ele pensa em ti, e
não só em ti, mas no menor cabelo da tua cabeça: é um artigo de fé do qual não
se pode duvidar» [106]. A consequência disto é que o fiel se torna capaz de um
completo abandono no Coração de Cristo, onde encontra repouso, consolação e
força: «Ó Deus! Que felicidade estar assim entre os braços e o peito [do
Salvador] […]. Permanece assim, querida Filha, e enquanto os demais comem na
mesa do Salvador diferentes alimentos, repousa e reclina, com a mais simples
confiança, como outro pequeno São João, a tua cabeça, a tua alma, o teu
espírito sobre o peito amoroso deste querido Senhor» [107]. «Espero que estejas
na caverna da pomba e no lado trespassado do nosso querido Salvador [...]. Quão
bom é este Senhor, minha querida Filha! Quão amável é o seu Coração! Moremos
ali, naquele santo domicílio» [108].
117. Mas, fiel ao seu
ensinamento sobre a santificação na vida ordinária, propõe que esta seja vivida
no meio das atividades, das tarefas e dos deveres do quotidiano: «Perguntais-me
como as almas que são levadas na oração a esta santa simplicidade e a este
perfeito abandono em Deus devem comportar-se em todos os seus atos? Respondo
que, não só na oração, mas na conduta de toda a sua vida, devem caminhar
invariavelmente em espírito de simplicidade, abandonando e entregando toda a
sua alma, as suas ações e os seus sucessos à vontade de Deus, com um amor de
perfeita e absoluta confiança, abandonando-se à graça e aos cuidados do amor
eterno que a Divina Providência sente por elas» [109].
118. Por todas estas
razões, no momento de pensar num símbolo que sintetizasse a sua proposta de
vida espiritual, conclui: «Pensei então, querida Madre, se estiverdes de
acordo, que devemos tomar como escudo um único coração trespassado por duas
flechas, encerrado numa coroa de espinhos» [110].
178. São Francisco de
Sales foi especialmente iluminado pelo pedido de Jesus: «Aprendei de mim,
porque sou manso e humilde de coração» (Mt 11, 29). Assim, dizia ele, nas
coisas mais simples e ordinárias roubamos o coração do Senhor: «É necessário
ter o cuidado de o servir bem seja nas coisas grandes e elevadas que nas coisas
pequenas e desprezíveis, pois podemos igualmente, por estas ou por aquelas,
roubar-lhe o coração por amor [...]. Estes pequenos gestos quotidianos de
caridade, esta dor de cabeça, esta dor de dentes, esta indisposição, esta
contrariedade do marido ou da mulher, este partir de um copo, este desprezo ou
este enfado, a perda das luvas, de um anel, de um lenço, este pequeno incómodo
assumido para deitar-se à boa hora e se levantar cedo para rezar, para receber
a comunhão, esta pequena vergonha que se experimenta ao fazer um ato de devoção
em público; em suma, todos estes pequenos sofrimentos recebidos e abraçados com
amor satisfazem grandemente à Bondade divina» [180].
Mas, em última análise, a chave da nossa resposta ao amor do Coração de Cristo é o amor ao próximo: «É um amor firme, constante, imutável, que, não se detendo em ninharias, nem nas qualidades ou condições das pessoas, não está sujeito a mudanças ou animosidades [...]. Nosso Senhor ama-nos sem interrupção, suporta as nossas faltas como as nossas imperfeições; […] devemos, portanto, fazer o mesmo em relação aos nossos irmãos, jamais deixando de apoiá-los» [181].
Santa Margarida Maria
119. Foi sob a influência
salutar da espiritualidade de São Francisco de Sales que tiveram lugar os
acontecimentos de Paray-le-Monial, no final do século XVII. Santa Margarida
Maria Alacoque relatou importantes aparições entre o fim de dezembro de
1673 e junho de 1675. É fundamental a declaração de amor que se destaca na
primeira grande aparição. Jesus diz: «O meu divino Coração está tão abrasado de
amor para com os homens, e em particular para contigo, que, não podendo já
conter em si as chamas da sua ardente caridade, precisa derramá-las por teu
meio, e manifestar-se-lhes para os enriquecer de seus preciosos tesouros, que
eu te mostro a ti» [111].
120. Santa Margarida
Maria resume tudo isto de uma forma poderosa e fervorosa: «Ali me descobriu as
maravilhas do seu amor e os segredos insondáveis do seu Sagrado Coração, que
sempre me tinha conservado escondidos até àquele momento em que os abriu pela
primeira vez, mas de modo tão real e sensível que me não deixou lugar a nenhuma
dúvida» [112]. Nas declarações seguintes, reafirma-se a beleza desta mensagem:
«Ele me mostrou as maravilhas inexplicáveis do seu puro amor, e o excesso a que
ele tinha chegado em amar os homens» [113].
121. Este reconhecimento
intenso do amor de Jesus Cristo que Santa Margarida Maria transmitiu oferece-nos
valiosos estímulos para a nossa união com Ele. O que não significa que nos sintamos
obrigados a aceitar ou assumir todos os pormenores desta proposta espiritual,
onde, como muitas vezes acontece, se misturam com a ação divina elementos
humanos relacionados com os nossos próprios desejos, inquietações e imagens
interiores [114]. Tal proposta deve ser sempre relida à luz do Evangelho e de
toda a rica tradição espiritual da Igreja, reconhecendo ao mesmo tempo o bem
que fez em tantos irmãos e irmãs. Isto permite-nos reconhecer os dons do Espírito
Santo no seio dessa experiência de fé e de amor. Mais importante do que os
pormenores é o núcleo da mensagem que nos é transmitida e pode ser resumido nas
palavras que Santa Margarida ouviu: «Eis aqui este Coração que tanto tem amado
os homens, que a nada se tem poupado até se esgotar e consumir para lhes
testemunhar o seu amor» [115].
122. Esta manifestação é
um convite a um crescimento no encontro com Cristo, graças a uma confiança sem
reservas, até chegarmos a uma união plena e definitiva: «É preciso que o Divino
Coração de Jesus substitua de tal forma o nosso, de modo que só Ele viva e atue
em nós e por nós; que a sua vontade [...] possa atuar absolutamente sem
resistência da nossa parte; e, finalmente, que os seus afetos, pensamentos e
desejos estejam no lugar dos nossos, e sobretudo o seu amor, que se amará a si
mesmo em nós e por nós. E assim, sendo este amável Coração tudo em todas as
coisas, poderemos dizer com São Paulo que já não somos nós que vivemos, mas é
Ele que vive em nós» [116].
123. Efetivamente, na
primeira mensagem recebida, ela apresenta esta experiência de uma forma mais
pessoal, mais concreta, cheia de fogo e de ternura: «Pediu-me o meu coração; eu
roguei-lhe que o tomasse, o que ele fez, e meteu-o no seu adorável Coração, no
qual me mostrou como um atomozinho que se consumia naquela fornalha ardente»
[117].
124. Num outro ponto,
notamos que aquele que se entrega a nós é Cristo ressuscitado, cheio de glória,
cheio de vida e de luz. Embora em diversos momentos fale dos sofrimentos que
suportou por nós e das ingratidões que recebe, não sobressaem aqui o sangue e
as feridas sofridas, mas a luz e o fogo do Vivente. As feridas da Paixão, que
não desaparecem, são transfiguradas. Assim, o Mistério da Páscoa é aqui
expresso na sua totalidade: «Uma vez, entre outras, quando estava o Santíssimo
exposto, […] Jesus Cristo, meu doce Mestre, apareceu-me todo radiante de
glória, com suas cinco chagas, brilhantes como cinco sóis; e a sua sagrada
humanidade lançava chamas de todos os lados, mas sobretudo de seu sagrado
peito, que parecia uma fornalha: abrindo-o, descobriu-me seu amantíssimo e
amabilíssimo Coração, que era a fonte viva daquelas chamas. Foi então que ele
me mostrou as maravilhas inexplicáveis do seu puro amor, e o excesso a que ele
tinha chegado em amar aos homens, de quem não recebia senão ingratidões e frieza»
[118].
164. Nas experiências espirituais de Santa Margarida Maria encontramos, junto da declaração ardente do amor de Jesus Cristo, uma ressonância interior que nos chama a dar a vida. Sabermo-nos amados e colocar toda a nossa confiança nesse amor não significa anular as nossas capacidades de doação, não implica renunciar ao desejo irrefreável de dar alguma resposta a partir das nossas pequenas e limitadas capacidades.
165. A partir da segunda
grande manifestação a Santa Margarida, Jesus exprime dor porque o seu grande
amor pelos homens «não recebia senão ingratidão e friezas. Isto – disse-me Ele
– custa-me muito mais do que tudo quanto sofri na minha Paixão» [162].
166. Jesus fala da sua
sede de ser amado, mostrando-nos que o seu Coração não é indiferente à nossa
reação diante do seu desejo: «Tenho sede, mas uma sede tão ardente de ser amado
pelos homens no Santíssimo Sacramento, que esta sede me consome; e não encontro
ninguém que se esforce, segundo o meu desejo, por saciar a minha sede,
retribuindo um pouco do meu amor» [163]. O pedido de Jesus é o amor. Quando o
coração fiel o descobre, a resposta que brota espontaneamente não é uma custosa
busca de sacrifícios ou o mero cumprimento de um pesado dever, é uma questão de
amor: «Recebi de Deus graças muito grandes do seu amor, e senti-me impelida do
desejo de lhe corresponder de algum modo e de lhe pagar amor por amor» [164]. O
mesmo ensina Leão XIII, escrevendo que, mediante a imagem do Sagrado Coração, a
caridade de Cristo «nos move ao amor recíproco» [165].
80. Mais recentemente,
São João Paulo II apresentou o desenvolvimento deste culto nos séculos passados
como uma resposta ao crescimento de formas de espiritualidade rigoristas e
desencarnadas que esqueciam a misericórdia do Senhor, mas ao mesmo tempo como
um apelo contemporâneo a um mundo que procura construir-se sem Deus: «A devoção
ao Sagrado Coração, do modo como se desenvolveu na Europa de há dois séculos,
sob o impulso das experiências místicas de Santa Margarida Maria Alacoque, foi
a resposta à rigorosidade jansenista, que tinha acabado por menosprezar a
infinita misericórdia de Deus. [...] O homem do Ano 2000 tem necessidade do
Coração de Cristo para conhecer Deus e para se conhecer a si mesmo; tem
necessidade dele para construir a civilização do amor» [72].
194. Com efeito, Santa
Margarida conta que, numa das manifestações de Cristo, Ele lhe falou do seu
Coração apaixonado de amor por nós, que «não podendo já conter em si as chamas
da sua ardente caridade, precisa derramá-las» [208]. Uma vez que o Senhor
todo-poderoso, na sua liberdade divina, quis ter necessidade de nós, a
reparação entende-se como o remover dos obstáculos que colocamos à expansão do
amor de Cristo no mundo, com as nossas faltas de confiança, gratidão e entrega.
REFERÊNCIAS
[103] Carta a S. Joana
Francisca de Chantal (24 de abril de 1610) in: Œuvres de Saint François de
Sales, t. XIV, Lettres, vol.4 (Annecy, 1906), 289.
[104] Sermão para o II
Domingo de Quaresma (20 de fevereiro de 1622). in: o. c., t. X, Sermons, vol. 4
(Annecy, 1898), 243-244.
[105] Carta a S. Joana Francisca
de Chantal (31 de maio de 1612). in: o. c., t. XV, Lettres, vol. 5 (Annecy,
1908), 221.
[106] Carta a Marie-Aimée
de Blonay (18 de fevereiro de 1618). in: o. c., t. XVIII, Lettres, vol. 8
(Annecy, 1912), 170-171.
[107] Carta a S. Joana
Francisca de Chantal (fins de novembro de 1609). in: o. c., t. XIV, Lettres,
vol. 4 (Annecy, 1906), 214.
[108] Carta a S. Joana
Francisca de Chantal (aprox. 25 de fevereiro de 1610). Ibid., 253.
[109] Les vrais
entretiens spirituels, 12e. Entretien.
in: o. c., t. VI (Annecy, 1895), 217.
[110] Carta a S. Joana
Francisca de Chantal (10 de junho de 1611). in: o. c., t. XV, Lettres, vol. 5
(Annecy, 1908), 63.
[180] Introdução à vida
devota, p. III, c. 35. in: Œuvres de Saint François de Sales, t. III, (Annecy,
1893), 254-255.
[181] Sermão para o XVII Domingo depois de Pentecostes. in: o. c., t. IX, (Annecy, 1897), Sermons, vol. 3, 200-201.
[72] Catequese (8 de
junho de 1994): L’Osservatore Romano (ed. semanal em português de 11de junho de
1994), 8.
[111] S. Margarida Maria
Alacoque, Autobiografia, n. 53 (Braga, 1984), 57-58.
[112] Ibid., 57.
[113] Ibid., n. 55, o. c., 60.
[114] Cf. Dicastério para
a Doutrina da Fé, Normas para proceder no discernimento de presumidos fenômenos
sobrenaturais (17 de maio de 2024), Apresentação – Razão da nova redação das
Normas; I, A, 12.
[115] S. Margarida Maria
Alacoque, Autobiografia, n. 92, o. c., 93.
[116] Idem, Carta à Ir.
de la Barge (22 de outubro de 1689): Vie et Œuvres de la Bienheureuse
Marguerite-Marie Alacoque, t. 2 (Paris, 1915), 468.
[117] Idem,
Autobiografia, n. 53, o. c., 58.
[118] Ibid., n. 55, o.
c., 60.
[162] S. Margarida Maria
Alacoque, Autobiografia, n. 55, o. c., 60.
[163] Idem, Carta ao Pe.
Croiset (3 de novembro de 1689): Vie et Œuvres de la Bienheureuse Marguerite-Marie
Alacoque, t. 2 (Paris, 1915), 576-577.
[164] Idem,
Autobiografia, n. 92, o. c., 93.
[165] Carta enc. Annum
Sacrum (25 de maio de 1899): ASS 31 (1898-1899), 649.
[208] Autobiografia, n.
53: o. c., 57.
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