A santidade segundo Francisco de Sales e Francisco de Roma
O Papa Francisco publicou sua Exortação
Apostólica Gaudete et Esxultate –
“Alegrai-vos e Exultai”, sobre a santidade nos dias atuais. Nela ele faz uma citação de São Francisco de Sales, no parágrafo n.17, ao falar que,
algumas vezes, quando chegam sofrimentos, Deus nos convida a dar um maior
testemunho e, em outras, simplesmente nos dá inspirações para “encontrar uma
forma mais perfeita de viver o que já fazemos”, como por exemplo, realizar
ações ordinárias de maneira extraordinária, com muito amor[1]: “há inspirações que nos fazem apenas tender para uma perfeição
extraordinária das práticas ordinárias da vida cristã”[2].
Depois, cita as sete beatas religiosas do
primeiro mosteiro da Visitação de Madri como exemplo de comunidades que foram declaradas
santas (n.141). E isto é o que traz de forma direta a respeito da tradição
salesiana.
Observado isso, não tem como dissociar os
dois Franciscos neste tema da santidade nos dias atuais. Francisco de Roma (Papa
Francisco) tem levado a termo o Concílio. Francisco de Sales o antecipou, principalmente
no que diz respeito à vocação universal à santidade na Igreja, como afirmam
Paulo VI[3] e Bento XVI[4].
Vejamos a similaridade da doutrina.

Francisco
de Sales:
“O Senhor, criando o universo, ordenou as
árvores que produzissem frutos, cada uma segundo a sua espécie; e ordenou do
mesmo modo a todos os fiéis, que são as plantas vivas de sua Igreja, que
fizessem dignos frutos de piedade, cada
um segundo o seu estado e vocação (IVD[5] I, III).
Continua Francisco de Roma: “Por isso, uma
pessoa não deve desanimar, quando contempla modelos de santidade que lhe
parecem inatingíveis. Há testemunhos que são úteis para nos estimular e
motivar, mas não para procurarmos copiá-los, porque isso poderia até
afastar-nos do caminho, único e específico, que o Senhor predispôs para nós.
Importante é que cada crente discirna o
seu próprio caminho e traga à luz o melhor de si mesmo, quanto Deus colocou
nele de muito pessoal (cf. 1 Cor 12, 7), e não se esgote procurando imitar algo
que não foi pensado para ele.” (nn.10-11).
Francisco
de Sales:
“Diversas são as regras que devem seguir as
pessoas da sociedade, os operários e os plebeus, a mulher casada, a solteira e
a viúva. A prática da devoção tem que
atender a nossa saúde, as nossas ocupações e deveres particulares. (...)
seria porventura louvável se um bispo fosse viver tão solitário como um
cartuxo? Se pessoas casadas pensassem tão pouco em ajuntar para si um pecúlio,
como os capuchinhos? Se um operário frequentasse tanto a igreja como um
religioso o coro? Se um religioso se entregasse tanto a obras de caridade como
um bispo? Não seria ridícula uma tal devoção, extravagante e insuportável?”
(IVD I, III).
Francisco
de Sales,
em vez do termo “santidade, usa “devoção”, mas com o mesmo sentido: “A
verdadeira devoção, Filoteia, pressupõe o Amor de Deus ou, melhor, ela mesma é o mais perfeito amor a Deus.
Esse amor chama-se graça, porque adereça a nossa alma e a torna bela aos olhos
de Deus. Se nos dá força e vigor para praticar o bem, assume o nome de
caridade. E se nos faz praticar o bem frequente, pronta e cuidadosamente,
chama-se devoção e atinge então ao maior grau de perfeição.” (IVD, I, III).
Ao passo que Francisco de Roma também diz: “É
verdade que não há amor sem obras de amor, mas esta bem-aventurança lembra-nos
que o Senhor espera uma dedicação ao irmão que brote do coração, pois ‘ainda
que eu distribua todos os meus bens e entregue o meu corpo para ser queimado,
se não tiver amor, de nada me vale’ (1 Cor 13, 3). Manter o coração limpo de
tudo o que mancha o amor: isto é santidade.” (nn.85-86).
O
Concílio parece ser o eixo de encontro dos dois Franciscos: o de Sales antecipando-o;
o de Roma, aplicando-o. Dito isto, seguiremos comparando apenas o capítulo V da
Gaudete et Esxultate que fala das “características
da santidade no mundo atual”.
Suportação,
paciência e mansidão (nn.112-121)
Francisco
de Roma
fala da importância de “permanecer centrado, firme em Deus que ama e sustenta.
A partir desta firmeza interior, é possível aguentar, suportar as
contrariedades, as vicissitudes da vida e também as agressões dos outros, as
suas infidelidades e defeitos...” (n.112). Suportar com paciência e mansidão
torna-se uma postura profética: “O testemunho de santidade, no nosso mundo
acelerado, volúvel e agressivo, é feito de paciência e constância no bem
(n.112). É preciso “lutar e estar atentos às nossas inclinações agressivas e
egocêntricas, para não deixar que ganhem raízes ...” (n.114).
Francisco
de Sales
é o santo da mansidão que sabia suportar com paciência os incômodos do
cotidiano. Assim ensinou: “A doçura e a
humildade são as bases da santidade”. Por isso, com insistência, recomenda
estas virtudes: “Dentre todas as virtudes, vos recomento as duas mais queridas
de Nosso Senhor, as que tanto deseja que aprendamos d’Ele: a humildade e a
doçura de coração” (Carta 518 a senhora Brülart, maio de 1609; OEA XIV,
138). E, exortava: “Nunca sejas violento
nas discussões, ama os que erram enquanto corriges os erros. E, se suas
oposições são distintas, não empregue nunca a oposição polêmica, aproxima a luz
da luz. Seja tenaz em amar, em orar, em iluminar. Saiba ter muita paciência,
saiba devolver gradualmente aos equivocados a plenitude da verdade, daquela que
a ninguém é lícito afastar‐se, e ninguém tem permissão para diminuí‐la” (Carta
2097 à madre Chantal; OEA XXI, 185).
Alegria e sentido de humor (nn.122-128)
A
palavra alegria plasma o pontificado de Francisco
de Roma. É sempre sua primeira palavra. Nesta Exortação, ele explica: “O santo é capaz de
viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros
com um espírito positivo e rico de esperança. Ser cristão é ‘alegria no
Espírito Santo’ (Rm 14, 17), porque, ‘do amor de caridade, segue-se necessariamente
a alegria. Pois quem ama sempre se alegra na união com o amado” (n.122).
Lajeunie[6] nos faz conhecer este
pensamento de Francisco de Sales: “a
devoção não é sombria, nem triste, nem entediada, mas ao contrário, é uma fonte
de alegria pois consiste em ‘um certo grau de excelente caridade que nos faz
prontos, ativos e diligentes para observar os mandamentos de Deus e para fazer
gostosamente todas as obras boas que possamos’ incluindo as que não estão
mandadas ‘mas apenas aconselhadas ou inspiradas’ (2001, p. 246-247). Conta-se
que uma das famosas frases que dizia o santo bispo é: “Um santo triste é um
triste santo”. Bem afirma o Papa: “O mau humor não é um sinal de santidade”
(n.126).
Ousadia e ardor (nn.129-139)
“A
santidade é parresia: é ousadia, é
impulso evangelizador que deixa uma marca neste mundo” (n.129). “Deus é sempre
novidade, que nos impele a partir sem cessar e a mover-nos para ir mais além do
conhecido, rumo às periferias e aos confins. Leva-nos aonde se encontra a
humanidade mais ferida e aonde os seres humanos, sob a aparência da
superficialidade e do conformismo, continuam à procura de resposta para a
questão do sentido da vida.” (n.135).
Usando o termo
“zelo”, ensina Francisco de Sales: “O
verdadeiro zelo é filho da caridade, sendo, como é, seu ardor. Esta é sua característica
particular e esta filiação o reveste de todos aquelas características que
acompanham o verdadeiro amor. (...) O verdadeiro zelo tem ardores muito
inflamados, mas constantes, firmes, doces, laboriosos, amáveis e infatigáveis”.
Em comunidade (nn.140-146)
Francisco
de Sales concebe
a Igreja na imagem comunitária do jardim: “A Igreja é um jardim adornado de
infinitas flores, entre as quais reinam diversos graus, diversos matizes,
diversos odores, em suma, diferentes perfeições, cada uma delas com seu valor, sua
graça, sua beleza, todas em variadíssimo conjunto, formando agradável e perfeita
formosura” (TAD 2,7).
Francisco
de Roma
apresenta a mesma beleza formada comunitariamente: “A santificação é um caminho
comunitário, que se deve fazer dois a dois. Reflexo disto temo-lo em algumas
comunidades santas. Em várias ocasiões, a Igreja canonizou comunidades
inteiras, que viveram heroicamente o Evangelho ou ofereceram a Deus a vida de
todos os seus membros. De igual modo, há muitos casais santos, onde cada cônjuge
foi um instrumento para a santificação do outro. Viver e trabalhar com outros
é, sem dúvida, um caminho de crescimento espiritual” (n.141).
Em oração constante (nn.147-157)
Francisco
de Roma:
“O santo é uma pessoa com espírito orante, que tem necessidade de comunicar com
Deus. É alguém que não suporta asfixiar-se na imanência fechada deste mundo e,
no meio dos seus esforços e serviços, suspira por Deus, sai de si erguendo
louvores e alarga os seus confins na contemplação do Senhor. Não acredito na
santidade sem oração, embora não se trate necessariamente de longos períodos ou
de sentimentos intensos” (n.147).
Francisco de Sales: “A
oração é necessária ao homem: a árvore que não tem terra suficiente para cobrir
suas raízes não pode subsistir. Assim o homem não poderá subsistir se não tiver
uma atenção particular às coisas divinas” (Sermão de 22/03/1615. IX, 48,49,50).
Ela, “fazendo
o nosso espírito penetrar na plena luz da divindade e expondo a nossa vontade
abertamente aos ardores do amor divino, é o meio mais eficaz de dissipar as
trevas de erros e ignorância que obscurecem a nossa mente e de purificar o
nosso coração de todos os seus afetos desordenados” (IVD II,I).
Continua Francisco de Roma: “No fundo, é o desejo de Deus, que não pode
deixar de se manifestar dalguma maneira no meio da nossa vida diária: ‘procura
que a tua oração seja contínua e, no meio dos exercícios corporais, não a
deixes. Quando comes, bebes, conversas com outros, ou em qualquer outra coisa
que faças, sempre deseja a Deus e prende a Ele o teu coração’’ (n.148).
Francisco de Sales: “Todas
as ações daqueles que vivem no temor de Deus são contínuas orações e a isto se
chama oração vital... Pode se dizer que aqueles que dão esmolas, visitam os
enfermos e se exercitam em bo nas obras fazem oração e estas mesmas boas ações
pedem a Deus recompensa” (OEA VII, 61‐62).
Mais uma vez, Francisco de Roma: “Recordemos que ‘é a contemplação da face de
Jesus morto e ressuscitado que recompõe a nossa humanidade, incluindo a que
está fragmentada pelas canseiras da vida ou marcada pelo pecado. Não devemos
domesticar o poder da face de Cristo’ (n.151).
E Francisco
de Sales: “Mas o que muito em particular te aconselho é a oração de
espírito e de coração e, sobretudo, a que se ocupa da vida e paixão de Nosso
Senhor: contemplando-o, sempre de novo, pela meditação assídua, tua alma há de
por fim encher-se dele e tu conformarás a tua vida interior e exterior com a
sua. Ele é a luz do mundo: é nele, por ele e para ele que devemos ser
iluminados” (IVD II,I).
[1] Pensamento do Cardeal Francisco
Xavier Nguyen van Thuan, citado pelo Papa, mas que também se encontra em
Francisco de Sales.
[2] São Francisco de Sales, Tratado do
Amor de Deus, VIII, 11: Opere complete IV (Roma 2011), 468.
[3] “Nenhum melhor que Francisco de Sales, entre os
recentes Doutores da Igreja, soube, com profunda intuição de sua sagacidade,
prever as deliberações do Concílio” (Paulo VI,
Papa. Carta apostólica Sabaudiae Gemma,
Roma, 29/01/1967).
[4] “Nascia assim (com Francisco de
Sales) aquele apelo aos leigos, aquele cuidado pela consagração das coisas
temporais e pela santificação do cotidiano, sobre as quais insistirão o
Concílio Vaticano II e a espiritualidade do nosso tempo” (BENTO XVI, 2011).
[6] LAJEUNIE, Étienne-Jean. San Francisco de
Sales. El Hombre, El Pensamiento, La Acción. Vol. II. Salamanca: Gráficas
Cervantes, 2001.
Comentários
Postar um comentário