Discernimento e devoção - Espiritualidade Salesiana

Para Francisco de Sales é
importante que as pessoas que procuram a santidade, entendam que há uma relação
muito próxima entre o desejo de perfeição e os deveres e responsabilidades de
seu estado de vida. O caminho da santidade nos coloca diante de uma devoção,
onde a fé e a vida andam juntas, como também nos lembra o Documento de
Aparecida. Nosso pai espiritual nos orienta a discernir a devoção verdadeira
das falsas devoções e creio que vocês hão de concordar que num mundo com tantas
ofertas, não é difícil confundir-se no meio do caminho. Para Francisco a
verdadeira devoção procede do amor de Deus pela humanidade, bem como o pressupõe;
é a própria humanidade que responde a esse amor por meio de atitudes concretas,
como uma noiva que corre ao encontro do seu amado. Em outras palavras,
reconhecer e acolher a graça de Deus na nossa vida nos convoca à prática da
caridade. Aqui, caridade e verdadeira devoção se unem num mesmo movimento, pois
a verdadeira devoção nada destrói; mas sim, tudo aperfeiçoa. Não anda segundo
determinam muitas regras da sociedade, numa proposta seletiva e excludente:
onde quer que estejamos, podemos e devemos aspirar continuamente à perfeição,
certos de que Deus de braços abertos espera por nós e que há de nos confiar uma
missão.
É comum nas vivências
espirituais, gastarmos muita energia para saber quem é Deus e fazermos pouco
esforço para saber quem somos, esquecendo-se de que Deus se manifesta
essencialmente em cada filho, filha. Sem essa premissa, fica difícil fazer um
discernimento coerente, ainda mais se o desejamos fazê-lo na perspectiva
salesiana, que necessariamente vai nos colocar diante duas perguntas fundamentais:
Quem sou eu? Quem é Deus? Daí nasce um trabalho antropológico pelo conhecimento
de si em Deus e o conhecimento de Deus na própria história. Na busca de
respostas a estas interrogações estabelece-se uma comunicação entre o criador e
a criatura. O Deus que ama, nos fala e nos escuta, atraindo-nos a falar-lhe de
nós e escutá-Lo com fiel admiração. Há a marca de uma linguagem entre Deus e a
pessoa de maneira contextualizada, no momento presente. Desta relação dialógica
vai nascer a verdadeira experiência espiritual, de onde também, brotará o
desejo de colocar-se no caminho de perfeição, e este apresenta sempre um
desafio: entregar sua vontade para fazer a vontade do Pai. Seguir o exemplo de
Jesus: alimentar a vida com a vontade do Pai. Aqui, na maioria das vezes, surge
uma dúvida existencial: o que é a vontade de Deus na minha vida? Como saber que
determinado acontecimento ou apelo é vontade de Deus para mim? A resposta pela
vontade do Pai vem pelo caminho do discernimento espiritual que atinge o concreto
da existência humana, com suas dores, incertezas, fracassos e vitórias. Para
tal resposta chegar com sua real essência, é preciso ser honesto nas perguntas,
não ter medos de fazê-las. Ainda, é bom lembrar: o discernimento inclui a
presença de uma segunda pessoa, o conselheiro ou conselheira espiritual.
As pessoas que mais admiramos são
as que foram honestas a cada situação de sua vida, encarando as diversas
situações como elas eram e tomando decisões evangelicamente coerentes, mesmo
que isso incluísse perdas. Eis um ponto difícil de entender: as perdas. Não há
como fugir. O discernimento nos conduzirá à necessidade da lapidação pessoal,
perder o excesso que oculta o verdadeiro brilho de cada pessoa. Podemos incluir
paralelamente, quase que sinonimamente, a palavra renúncia: deixar algo, mesmo
sendo bom, por outro melhor. A vida devota, na busca pela santidade, exigirá
tais atitudes. Por exemplo, a organização em casa, exige renúncia do descanso,
para o trabalho em limpar os móveis, trocar tapetes, cortinas, aquilo que bem
conhecemos de nosso cotidiano, não sem sentido, mas para oferecer maior
comodidade e paz no merecido repouso, ou porque sabemos que vamos receber a
visita de amigos, de pessoas que nos são queridas.
Estamos entendendo por essas
linhas que o discernimento espiritual envolve todo o ser humano, e isso
realmente é verdade. A pessoa concreta e o contexto em que ela vive formam a
unidade no processo de discernimento, assim como o ser humano é uma unidade de
corpo e alma, com sua história e seus anseios nos seus diversos aspectos. A
vida humana não é uma realidade estática e pré-determinada. A vida tem
características próprias: crescimento, sentimentos, movimento, criatividade,
tendências, conflitos e relações. Por isso, Francisco de Sales insiste para
entendermos o amor de Deus em nossas vidas como movimento contínuo e renovado.
Tudo na espiritualidade salesiana é muito pessoal e adaptado à qualidade do
coração do homem ou da mulher que procura amar a Deus com todas as suas forças.
Cada indivíduo tem um modo original de conformar-se, ao Senhor que modula cada
um de nós pela inspiração incessante do Espírito Santo e é isto sinal visível
dum humanismo devoto que percorre o ciclo: iniciativa de Deus, resposta humana;
amor de Deus, caridade humana e assim progressivamente.
Vê-se então, claramente
entendido, que discernimento é a arte da vida espiritual, na qual eu compreendo
como Deus se comunica comigo e a verdadeira resposta que a Ele devo oferecer.
Há uma inteligência contemplativa. Uma via contemplativa e sapiencial que nos
protege dos desvios, do fundamentalismo, dos exageros e nos situa num contínuo
crescimento nas virtudes. Deste modo, somente pode-se assumir a vontade de Deus
em nossa vida na medida em que formos capazes de sermos adultos na fé e assim,
não haverá espaço para comércio com Deus ou excesso de amor próprio que
determina como deve ser este ou aquele acontecimento. Seremos pessoas livres,
capazes de andar com fé pela vida, de transcender a nós mesmos, reconhecer-nos
pessoas amadas e por isso amantes, não simplesmente na idéia, mas, no concreto
do cotidiano.
Discernir o bem do mal, o bom do
ruim, o motivo e as conseqüências de cada ato, mesmo se foi omisso, sem a
pesada idéia moral de julgamento e condenação, tendo em mente o olhar cuidadoso
de um Deus que ama sem medida e de um ser humano, embora imperfeito, mas
querido e amado pelo seu Deus, é atitude que revela fé madura e conhecimento de
si. Ser quem se é e sê-lo perfeitamente, como ensina São Francisco de Sales, é
processo de filtragem de todas as coisas, para ficar somente com o essencial, é
sinal de sabedoria, de beleza e de virtude. E o mais bonito é que nesse
processo vamos encontrar a santidade, esse dom revelado a cada pequena tarefa
na casa que somos, na casa que temos, a cada simples gesto de lapidação como,
ser mais paciente, sorridente, mais disponível para ajudar as pessoas. A cada
passo, o discernimento espiritual nos conduzirá a configurar-nos a Cristo. Isso
implicará sofrimento por ver a dor do irmão abandonado, tratado com indiferença
e espoliado pelos poderosos desse mundo ou para descobrirmo-nos também nessas
atitudes e pôr-nos em processo de conversão à luz do rosto misericordioso do
Pai querido. No fim tudo é graça, e o caminho que parecia longo e difícil,
fez-se singular, o que era amargo torna-se doce, pois em companhia Daquele que
é a razão, se tem sempre o impulso necessário.
Trilhar pelos caminhos da
verdadeira devoção é comprometer-se em ser melhor a cada dia, segundo o
Evangelho. Por isso a importância de discernir corajosamente o que me faz ser
mais fiel ao Cristo. Em casa, na Igreja, no trabalho, no lazer, como já foi
dito, há sempre o perigo de confundirmos nossa vontade pessoal, nossos
interesses e limitações com a Vontade de Deus. É nessas horas em que invocamos
o auxílio do Espírito Santo, buscamos ajuda de alguém para pôr mais luz na
estrada, a fim de decidir pela melhor perspectiva da santidade e do amor que
torna tudo pleno. E quando o discernimento tornar-se muito difícil ouviremos
mais uma vez o sábio conselho de nosso santo: Fique em Paz, o mesmo Deus que o colocou nessa situação, o
conduzirá com sua mão, até o fim. Fique em paz.
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