Deus se revela - Filosofia e Teologia fotografando
Certa vez, alguém caminhando por
várias cidades, havia exclamado que já vira de tudo: cidade sem política, sem
filósofos, sem juízes, mas sem deuses, jamais. É que religião é o modo do homem
se relacionar com o fundamento do seu ser. Nos momentos mais significativos da
existência humana como o nascimento, o casamento e a morte, os ritos religiosos
dão significância e norte. São eles que presidem estes acontecimentos sobre a
égide da fé. Religiões são fenômenos culturais situados no tempo e nos espaço.
No presente texto, caros amigos, procuraremos falar sobre a Religião como um
fato fundamentado pela teologia e que pressupõe a revelação.
Teologia é a intelecção da fé.
Faz-se teologia a partir do dar-se de Deus aos homens, à fé dos homens. É
justamente a fé querendo entender que faz teologia. Assim, a religião é um fato empírico que pode
ser estudado, mas seu objeto, Deus, não pode ser categoricamente provado
segundo os esquemas científicos vigentes. Portanto, esse fato faz existir uma
ciência própria. Esta parte da revelação. O certo é que não podemos ignorar a
religião. Tal qual o uso de instrumentos e a linguagem, ela é um fenômeno
originário do homem. Por isso faremos uso, no presente artigo, de situações
comuns do cotidiano para falar do tema que propomos, sem querer reduzi-lo ou
esgotá-lo. Desse modo, manifestamos nosso respeito e apreço por tão
antropológico e divino assunto do qual a filosofia ousa adentrar.
RELIGIÃO: um fato fundamentado pela teologia e que pressupõe
a Revelação
Penso na seguinte cena: um
simpático velhinho caminhando a passos lentos pela calçada de uma movimentada
rua, levando uma bolsinha pendurada na mão. Seu netinho, saindo da escola,
avista o vovô e vai correndo em sua direção. Alcança o avô, dá-lhe um beijo e
pergunta sobre o conteúdo da bolsa. “É um filme fotográfico, meu filho”
responde o velhinho, acrescentando: “estou levando para revelar”. “E o que é
revelar, vovô?” Indaga o menino. “É mostrar algo que está gravado aqui dentro,
que está escondido, que a gente ainda não consegue ver, mas que pode se tornar
conhecido desde que a gente o leve para alguém revelar. Essa pessoa não vai
inventar nada, não vai criar, apenas vai mostrar o que está ali, pronto para
ser visto.” E a criança, descontente com a resposta, pergunta: “então revelar é
mostrar uma pessoa real?” certamente o avô responderia: “Não. É apenas uma
imagem, mas nunca a totalidade da pessoa. É uma recordação que faz a gente
desejar ainda mais quem se ama. É um pouco melhor do que as imagens que já foi
possível ao homem ter, mas muito distante ainda da presença real de alguém”.

Revelação: deixar aparecer, tirar
o ver, deixar mostrar-se. O ser humano porta em si o mistério de um
esconder-se, de um reter-se, mas ao mesmo tempo uma capacidade de comunicar, de
dar-se a conhecer, revelar-se. É um fluxo intenso que nunca se esgota. Um grito
silencioso e um silêncio gritante. Um raio de luz dentro do eclipse de suas
incógnitas. Alguém que sabe e deseja dar de si, mas que também deseja
insaciavelmente receber. É este ser que fala em “revelação”. Não fala de
qualquer jeito, fala buscando o sentido de sua existência, das razões e dos
mistérios que o envolvem. Pergunta-se por Deus e por que Deus age da forma que
age. Pergunta-se pela sua fé e com as perguntas que só a fé pode suscitar. A
religião está neste movimento. Ela o provoca e o evoca. A teologia nasce nestas
perguntas e procura alimentar a vida da religião, ou das religiões.
Santo Anselmo definiu teologia
como fides quaerens intellectum (a fé buscando entender), a fé que busca
conhecer a verdade, a fé que busca a luz (BOFF, 1998, p. 25). A reflexão teológica
é a inteligência da fé (GUTIÉRREZ, 1979, p. 15). Crê-se em Deus que se revelou
e procura entender de que forma esta fé deve repercutir no cotidiano da vida
dos crentes, de acordo com sua realidade no diferentes âmbitos. “Deus é o
objeto desta ciência” (LIBÂNIO, 1996, p.106). Assim, a teologia é um esforço
humano para fazer e apresentar respostas às questões da fé que permeiam a vida
dos fiéis, por isso pode se falar em diferentes teologias, uma vez que mudam as
fontes que regulam a fé, os lugares e realidades.
No fundo, existe uma certeza que
motiva a teologia: Deus revelou-se à várias religiões. A partir da revelação há
uma palavra a ser dada, uma realidade a ser refletida, respostas a serem
procuradas (Provérbios 25, 2). Neste desafio se aventura esta ciência sem
deixar ao mesmo tempo, de ser fé. Teologia é palavra de homens para homens.
Deus também fala na palavra humana, assim creem a maioria das religiões. Este
homem que fala a partir da intelecção de sua fé procura traduzir o mistério de
Deus, consciente de que sua fala é deficiente no que concerne à pessoa de Deus
(ou dos deuses), do mysterium tremendum et fascinans (mistério tremendo e
fascinante - uma expressão de Rudolf Otto).
Toda ciência possui um método. Método “é o caminho pelo qual
se chega a determinado resultado, ainda que esse caminho não tenha sido fixado
de antemão de modo refletido e deliberado” (HEGENBERG, 1976). Pode ser
entendido ainda, como “a ordem que se deve impor aos diferentes processos
necessários para atingir um determinado fim. É o caminho a seguir para chegar à
verdade nas ciências” (JOLIVET, 1979). A teologia é uma ciência. Segundo
Trujillo Ferrari (1974, p. 179), “ciência é todo um conjunto de atitudes e de
atividades racionais, dirigida ao sistemático conhecimento com objetivo
limitado, capaz de ser submetido à verificação”. Em se tratando de Teologia,
encontramos um problema quanto à verificabilidade do objeto, uma vez que Deus
se compreende pela fé e não por algo material, sujeito a procedimentos
verificáveis.
No entanto, o desenvolver da própria ciência trouxe luz a
uma visão de conhecimento verdadeiro bem mais amplo do que a maneira rigorosa
de fazer ciência. “Uma vez aceita pluralidade de jogos linguísticos, dos
diversos saberes, das diferentes maneiras de conduzir o próprio método, de
pautar seu rigor teórico e de fazer parte de uma comunidade científica como
expressão moderna de ciência, a teologia faz-lhe pleno jus” (LIBÂNIO; MURAD,
1996, p. 88).
O assunto de Deus que se revela
foi abordado num documento muito interessante da Igreja Católica. É a
Constituição Dogmática Dei Verbum do Concílio Vaticano II. Esta Constituição
fala de Deus que se faz amigo da humanidade e lhe comunica sua Palavra na
história, é Palavra que se faz história na humanidade de Jesus Cristo e permanece
na história através da Palavra lida, interpretada, celebrada e assumida pelos
que creem. Revelação divina manifesta-se
como Palavra de Deus: palavra nas Escrituras Sagradas, na Tradição e no
Magistério Apostólico (da Igreja Católica Romana).
Segundo a Dei Verbum, em todos os
tempos é Deus quem tem a iniciativa, pois ele é o Deus do amor. Os seres
humanos tem a necessidade de Revelação. Sendo assim a Palavra de Deus
entrelaça-se com a história e comunica todas as verdades para a salvação. A
Igreja como Sacramento de Cristo, transmite para todas as gerações esta
Palavra, interpretando-a e atualizando-a para o homem, segundo o Espírito Santo
e em conformidade com a Sagrada Tradição. Aqui está um exemplo da importância da
instituição para a religião.
Jesus Cristo como plenitude da
Revelação permanece para sempre a Palavra por excelência. Foi Ele quem revelou
o rosto do Pai e desafiou os seus a serem como o Pai (Mt 5, 48). Mas há um
tanto de mistério que convoca a fé. A revelação de Deus é uma relação que faz
compreender a verdade, mas jamais permite tê-la toda, nem poder explicá-la de
modo satisfatório, muito mesmo tomá-la como propriedade. Deus se dá e se retém.
Sua palavra é plena, mas a compreensão humana limitada. Talvez sua palavra seja
construtora e, ao mesmo tempo, construção. Deus constrói através de sua palavra
ou, como relembra o Gênesis, cria. Na construção não se vê o todo e quando o
todo está pronto, não se vê os alicerces, nem os ferros, nem os materiais que
ficaram no interior da obra. Na criação de uma arte, por exemplo, a beleza se
dá por este evidente que evidencia o não evidente. E a Revelação pode ser
tateada por expressões como estas.
Por fim, apenas uma
fotografia

Assim, utilizando-se de nossa
ilustração, entende-se que nenhuma religião enxerga tudo, nem um homem ou
mulher pode dizer onde estão todas as pedras deste mistério. É preciso caminhar
pelo jardim para ver todas as pedras, uma por vez, quatorze em outras, jamais
quinze. É na relação com a simetria do templo e do jardim que cada pedra vai se
mostrando e se escondendo. Assim, no caminho, novas certezas se mostram, ao
passo que outras se retém.
Os desafios ficam como instigação
aos apaixonados por este mistério que dá sentido ao jardim universal chamado
vida. Quem tem um porquê encontra um como, assim dissera Victor Frankl. Quem
quiser dizer o que é Religião fica obrigado a percorrer todos os ângulos do
jardim. Todo ângulo deste jardim é ponto de partida para outro. Por fim,
voltamos ao nosso diálogo entre avô e neto. Assim como o jardim japonês do
templo Ryoanji é uma fotografia do que quiséramos dizer aqui, tudo o que
insistirmos em dizer sobre teologia ou religião também o será.
[1]
Segundo a crença local, a décima quinta pedra só poderá ser vista por quem
atingir a iluminação.
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