A Santíssima Trindade



Amigo, amiga! Este texto é um resumo da Obra "Trindade e Reino de Deus. Uma contribuição para a teologia" de Jürgen Moltmann[1]. Pode nos ajudar a entender a doutrina que compõe o coração da Fé Cristã.
A doutrina da Santíssima Trindade interessa ao homem moderno? Que tipo de experiência é possível ter com Deus e concluir que trinitariamente é seu modo de existir? Schleiermacher aponta o Deus uno e trino como fruto de uma “concatenação de muitas consciências cristãs” (p. 18) e não simplesmente resultado de uma experiência pessoal. Entretanto, permanece como secundária, uma vez que a consciência monoteísta prevalece. Na relação com Deus, a questão da experiência pertence ao homem e a Deus, de modo distinto. “Se o homem sentir a paixão infinita do amor de Deus, que aí se manifesta, então perceberá o mistério do Deus uno e trino” (p. 20). Dor e admiração são caminhos para a experiência com outro, desviando do narcisismo e abrindo ao outro com as mudanças próprias de cada qual.
Depois da pergunta da experiência vem a pergunta da práxis. De fato, “o ‘eticismo’ e o pragmatismo do mundo moderno reduziram a doutrina trinitária a um monoteísmo moral” (p. 23). A reflexão sobre a Trindade perde sua importância quando conhecer se entende por dominar. Não é disto que se trata, mas duma admiração, duma comunhão. Se pensamos dessa forma, como ficam as definições teológicas de Deus como substância suprema e sujeito absoluto? A primeira vem da filosofia grega e das cinco vias de Tomás de Aquino que não responde quem é Deus, mas o que é o divino. Por isso não estamos obrigados “a chamar esta substância suprema ‘Deus’” (p. 27). Quando a cosmologia não é mais parâmetro para o conhecimento, o homem busca “o espelho para o conhecimento de Deus em sua própria subjetividade” (p. 28). Não é mais a partir do mundo, mas da existência, que se prova Deus. Ele é conhecido quando se auto revela, porque é um sujeito absoluto e perfeito, ou seja, um protótipo do homem enquanto sujeito que se descobre carente e finito. Mas Deus não está limitado a este conceito. “Ele se revela onde quer e quando quer” (p. 30) e não deve ser concluído como simplesmente um Deus pessoal maleável a subjetividade de cada indivíduo.
A compreensão teológica do Deus uno e trino é trazida à luz a partir de Jesus como Filho de Deus. Ela é consequente e conduz a uma nova compreensão de Deus, do mundo e do homem. Desde Tertuliano – passando por Agostinho e Tomás - “a Trindade cristã sempre foi expressa segundo o conceito comum da substância divina: Uma substantia – três personae” (p. 30). A partir de Hegel, ela “passou a ser representada de preferência no conceito geral do sujeito absoluto: um sujeito – três modos de ser” (p. 31), autodiferenciando-se e autoidentificando-se.  Mas faltou o “conceito de sujeito de ações e relacionamentos” (p. 31) próprio do conceito de pessoa trinitária. Assim, é sábio pensar a doutrina trinitária como existência relacional e comunitária, refletindo na “relação do homem com Deus, com os outros homens e com a humanidade, bem como, na comunhão com toda a criação” (p. 33).
A paixão de Jesus é um fato que conduz à questão sobre a apatia ou paixão de Deus. No homem histórico, Jesus de Nazaré, e em toda a história da humanidade, Deus permanece apático como ensina a filosofia grega ou Deus se envolve na tragédia humana e do mundo como um ser de relação? E este sofrimento, se possível, como se dá? O Deus cristão é o Deus que ama, por isso a teologia cristã deve encontrar na paixão de Cristo o próprio Deus e “descobrir esta paixão de Cristo em Deus mesmo” (p. 36). Não precisa igualar os sofrimentos. Mas entender que o sofrimento de Deus é diferente do sofrimento humano, e não menos sofrimento.
Quando se entende o sofrimento de Deus na paixão de Cristo, a fé cristã encontra aí o seu alimento donde recebe o vigor para encarar o sofrimento pela vida. Se Deus impassível conduz à impassibilidade do homem, o Deus apaixonado conduz o homem a se apaixonar pelo outro, a sofrer a paixão pelo amor. Deus não sofre por carência, tal qual a criatura, “mas sofre no seu amor” (p.37). Nisto consiste a possibilidade do “pathos de Deus”. O seu amor é a sua onipotência (Rolt, cf. p. 45), por isso, o Deus que sofre na vida interina da Trindade não é menos Deus e, como pensa Miguel de Urano, “o Deus vivo é o Deus que ama. O Deus que ama comprova sua presença amorosa em seu sofrimento” (cf. p.52). A imagem da Shekinah no Antigo Testamento pode significar isto: Deus sai de sua condição superior e acampa com o povo no deserto, sofre como itinerante. Por amor, Deus é capaz de um “eterno sacrifício”, pois quem ama concede a liberdade ao amado. E Berdiaev afirma que “o mundo teve início porque Deus desejou a liberdade” (cf. p. 56) e tal liberdade, da qual goza o ser humano, deixa um sofrimento em Deus, e Ele jamais a rechaça, mesmo em aflição por aqueles que se distanciam de tal amor. Assim pode-se compreender que “a verdadeira tragédia da história humana é a tragédia de Deus, que deseja a liberdade, e que só pode cria-la e conservá-la mediante o sofrimento de seu amor” (p. 57). Ao desejar a liberdade Deus se mostra passível ao sofrimento e, consequentemente, que possui uma natureza em movimento.
A questão de Deus e do sofrimento podem ser entendidas como uma coisa só. O alcance da dor, afirma Moltmann, é o mesmo alcance do amor. Deus sofre porque ama. Sua impassibilidade e poder consiste no amor. A liberdade é fruto desse amor, uma liberdade que não é “o poder absoluto de dispor oriundo do direito de propriedade romano” (p.68), mas a própria essência de Deus, ou seja, amor.
Nós conhecemos a Trindade por causa da história do Filho. É Ele “o revelador da Trindade” (p. 79). O filho é enviado por alguém. Jesus, nos Evangelhos, mostra-se como o Filho de um Pai Abba. É o reino deste Pai que ele anuncia. Este anúncio lhe foi confiado pelo Pai, não simplesmente diretamente, mas por meio do Espírito. A cena do batismo de Jesus salta como primeira em que esta plenitude comunidade comunicativa da Trindade, no Filho, se mostra. Assim, pois, “na História do Filho, a Trindade apresenta os seguintes elementos: o Pai envia o Filho, através do Espírito; o Filho procede do PAI, na força do Espírito; o Espírito conduz os homens ao seio da comunidade do Filho com o Pai” (p. 88). O Filho sofre por causa do reino do Pai, e sofre de duas distintas formas: exteriormente, no que se refere aos seus e às autoridades que o pregam na cruz, e interiormente, ao encontrar-se no abandono do Pai. O Pai também pode morrer, esta é sua maior angústia. Entretanto, até mesmo aí, sua missão se cumpre, uma vez que é o desfecho ainda incerto da encarnação. Por isso se pode entender que no ato de morrer Jesus é sujeito, não apenas mero objeto. Mesmo morrendo “sem Deus” Jesus está com o Pai, pois o Pai e o Filho são um só e quem viu o nazareno viu o Pai. O Filho não se imola ao acaso e de qualquer forma, pois “o Pai deixa o Filho imolar-se através do Espírito” (p. 95).
Assim, na cruz, temos: o Pai, “que entrega o seu próprio Filho à morte absoluta, por nós” (p. 96); o Filho, que “entrega-se a si mesmo, por nós” (p. 96); e, “o comum sacrifício do Pai e do Filho acontece por meio do Espírito Santo que liga e unifica o Filho, em seu abandono, com o Pai” (p. 96). Pai é sempre o nome (não o título) com que Jesus chama a Deus e o mesmo se dá em relação a Deus para com Jesus, ao chamá-lo de Filho. Jesus será chamado pelos cristãos da Igreja Primitiva de Senhor. Ele o é por ser Filho de Deus. Não é Senhor e daí, Filho. Assim, seu senhorio não é o de posse, mas o de relação com o Pai. Na vida do Pai e do Filho, na paixão e na vitória, o Espírito é protagonista no protagonismo próprio da relação trinitária de cada pessoa. Ele ressuscita Jesus. Ele “é o Espírito criador” (p.100). Sendo assim, a ressurreição revela a beleza da comunhão trinitária: “o Pai ressuscita o Filho, pela força do Espírito; o Pai revela o Filho pelo Espírito; o Filho é estabelecido como Senhor do poder de Deus, mediante o Espírito” (p.101). E acontece a nova criação, pelo poder do Espírito. A nova criação espera o julgamento do Senhor, o Filho, irmão confiável, o qual não teme.
Falar da Trindade é, basicamente, falar de cristologia, pois é por Cristo que conhecemos o rosto do Pai e a força do Espírito. A partir dele compreendemos a criação como “obra da humildade divina” (p.110). O mundo nasce do amor do Pai para com o Filho. Deus gera a ideia do mundo no amor que tem para com o Filho. Assim, “a criação é uma ação de Deus uno e trino, em sua unidade, dirigida para fora”. A relação da Trindade é amor. Esse amor faz nascer o desejo do mundo. Por isso, toda criação pode encontrar espaço tempo e liberdade na relação trinitária. “Deus cria sempre e continuadamente, tanto para dentro quanto para fora” (p.121), porque a criação é fruto de seu amor e seu amor nunca cessa de amar. Esse amor é dirigido ao Filho.
O mundo é criado através do Filho por “forças e energias do seu próprio Espírito” (p.124). Se a criação diversifica as Pessoas divinas, a força do Espírito unifica. A Trindade fez gerar num movimento exterior, o mundo. Desde a criação do mundo, o Filho estava destinado a se encarnar. E o mundo vive a sua criação no Filho e espera seu futuro messiânico. Nisto voltará ao seio da Trindade. O mundo foi criado pelo Pai, por meio de Cristo e será transfigurado por obra do Espírito. A criação é trinitária e na encarnação do Filho recebe  a “perfeita auto comunicação do Deus uno e trino” (p. 126). Sendo assim compreende-se porque, tanto criação como encarnação, não são realidades extra Trindade, mas relações intratrinitárias de Deus.
Bem, por mais que possamos falar da Trindade ela continua sendo um mistério. Um mistério que foi revelado por Cristo e que, na cristologia, se desenvolve. A partir de Jesus, O Filho, a história do cristianismo foi tecendo ideia sobre a Trindade. Foi disto que resultou a fé que professamos hoje, mas também alguns modos de entender que foram tidos como heréticos. O arianismo, por exemplo, sendo um cristianismo monoteísta, reduziu Cristo a simples mediador, filho primogênito, mas não unigênito do Pai, subordinado ao Pai. Aí estava uma compreensão mostrando Deus como único, uma preocupação da teologia cristã. Já o sabelianismo encontrou outra forma de afirmar Deus como único, embora três: “Pai, Filho e Espírito Santo são três modos da manifestação do Deus único” (p.145), mas o Deus único é uma pessoa só. E assim outras doutrinas tentaram explicar este mistério da Trindade Una.
Ainda dentre os primeiros teólogos, encontramos Tertuliano afirmando que “desde a eternidade Deus é único, mas não está só” (p.147). As três pessoas estão ligadas pela divina substância que é única. Barth (teólogo protestante moderno) afirma Deus como único e soberano em relação ao homem. A soberania é a liberdade de Deus concedida ao ser humano. Karl Rahner (um dos mais importantes teólogos do século XX) defende que “Deus nos é dado como Pai, Filho-Logos e Espírito Santo” (p. 158). Também afirma que “a Trindade ‘econômica’ é a Trindade ‘imanente’ e vice-versa” (p. 158). A primeira é aquela que se revela como três pessoas distintas no plano da salvação; a segunda diz respeito “a Deus uno e trino, como é em si mesmo” (p. 161). Mais uma vez encontramos a ideia do amor e da liberdade como sendo uma coisa só, em Deus Trindade. E isso faz entender o “Deus para nós”, o Deus que se revela, que cria o mundo. Sim, “a história da salvação do Deus uno e trino, eternamente vivo, que nos recebe na sua vida uma e trina, eternamente comunicativa” (p. 167). E esta intuição de Deus amor é fruto da vida fraterna. Aceitação e participação são duas palavras que estão na doutrina da Trindade e que são experimentadas na humana forma de ser comunidade.
O mistério da Trindade é insondável. O que se afirma é que “o Filho e o Espírito procedem eternamente do Pai; porém o Pai não procede de nenhuma outra Pessoa Divina” (p. 173). A paternidade é exclusiva do Pai. Ela favorece a comunhão trinitária. O Filho foi enviado na Liberdade dele, a do Pai, mas seu nascimento eterno está no Pai que infunde o Espírito desde sempre. A diferença entre o Filho e o Espírito é que o Filho é gerado e o Espírito inspirado. Os três existem como pessoa e têm suas individualidades características. O Pai é definido por ser Pai do Filho; o Filho por ser Filho do Pai; o Espírito por não ser o Pai nem o Filho, mas inspirado do Pai. O Filho participa indiretamente na procedência do Espírito. Participa pela paternidade do Pai. São pessoas porque existem-em-relação (Cf. p.180). No fim se conclui que “a unidade da Trindade é constituída pelo Pai, concentrando-se em torno do Filho, e é glorificada pelo Espírito Santo” (p. 185) e que “a unidade de Deus reside na unidade trina do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Não a precede, nem lhe sucede” (p.196).
A doutrina da Trindade precisa encontrar eco na economia da salvação, com disposições funcionais em relação ao reino. Mas não pode estar presa a ideologias, principalmente aquelas que legitimam dependência, impotência e servidão. Monoteísmo e monarquismo se prestam a isso, quando querem supor um Deus que governa tudo, em vez de um Deus que é comunhão. A Trindade é modelo da comunidade humana. Isto é muito sério. Encontrar este Deus-comunhão na história nos leva a lê-la e continuá-la com outros paradigmas. Em muitos casos, Deus entendido como “grande monarca do mundo no céu” e “patriarca divino sobre a terra” (p.202) foi instrumento da legitimação de “constituições políticas das sociedades de determinadas épocas” (p.198). “Junto aos mártires das perseguições cristãs e junto aos apologetas teológicos da cristandade, nos três primeiros séculos, o pensamento da teocracia era muito vivo” (p.200) e daí decorreu um amparo religioso para que monarcas governassem seus reinos como representantes do Deus único. O mundo romano politeísta vivia em discórdia quando o cristianismo surgiu. A ideia de um Deus único resolvia este conflito cultual, mas estava ligada a figura do imperador único, uma vez que o Império Romano queria ter um único Deus assim como um único monarca. Esta ideia (do monoteísmo político legitimado pela religião) vai até o absolutismo europeu da época do iluminismo.
Para que uma concepção que favoreça o tiranismo não dê brechas a legitimações religiosas a partir do Deus cristão, é preciso reformular a doutrina trinitária: que apresente a unidade do Pai todo-poderoso, do Filho e do Espírito como comunhão; que evidencie o Todo-poderoso como três, como amor, como poderoso no amor; que a realeza do Todo poderoso seja vista no crucificado; que o Espírito Santo seja visto como força que vem do amor do Pai e da ressurreição do Filho, não do acúmulo de poder. Talvez, um empecilho para que esta forma de entender a doutrina da Trindade esteja na formatação do governo da Igreja, onde o Papa é único e tem toda autoridade, sendo que o mesmo se dá com os bispos nas dioceses.[2] A comunhão fica desfavorecida, pois nem todos podem dialogar e decidir conjuntamente, comprometendo a imagem do Deus amor que se relaciona com a comunidade no seu todo e compartilha seu poder, ou seja, sua paixão.
Querendo superar a visão anterior, Joaquim de Fiore concebeu a Trindade dentro da história. “O Reino de Deus é único, mas ele é marcado diferentemente hora pelo Pai, ora pelo Filho, ora pelo Espírito Santo” (p.209). Está em relação com a história da liberdade dos homens. Nela, Deus reina, mas não ao modelo monarquista: “o reino do Pai é determinado pela criação na conservação do mundo pela paciência de Deus. O reino do Filho é determinado pela libertação dos homens de seu autoisolamento mortal, pelo amor sofredor. O reino do Espírito é determinado pelas forças e energias da nova criação” (p.216). Neste reino há liberdade que tem como verdade o amor. É uma liberdade que se caracteriza como paixão pelo futuro. Não é dominação, mas é comunidade. Isto mesmo, “a doutrina trinitária do reino é a doutrina teológica da liberdade. O conceito teológico da liberdade é o conceito da história trinitária de Deus: Deus deseja constantemente a liberdade da sua criação. Deus é a liberdade incriada da sua criatura” (p.220). E assim, na alternância histórica dos reinados das pessoas da Trindade, revela-se a Trindade sempre reinando e a humanidade sendo salva, iluminada e conduzida a eterna liberdade que se dá no tempo do Espírito, pois onde Ele está, está a liberdade, e onde está a liberdade está o amor e a plena comunhão.


[1] JURGEN, Moltmann. Trindade e Reino de Deus. Uma contribuição para a teologia.  Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
[2] Com Francisco, o Ministério Petrino tem se aberto a novas perspectivas (nota nossa).        



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