Biografia de São Francisco de Sales - Espiritualidade Salesiana

Francisco Boaventura de Sales nasceu prematuramente numa quinta-feira, 21 de agosto de 1567, no castelo de Sales, no ducado da Sabóia, hoje França. Primogênito de Francisco de Nouvelles e de Francisca de Sionnaz, ele um militar que casou-se aos quarenta e três anos de idade e ela uma donzela que casou-se com apenas quatorze anos, ambos pertencentes à nobreza. Recebeu este nome por causa dos padrinhos de batismo: Francisco de la Fléchère e Boaventura de Chevron-Villette.  O sobrenome Sales dado a Francisco advém do lugar onde morava sua família. O pai usava o sobrenome de Boisy por ter sido a condição que sua sogra e tia exigira para que o casal recebesse o dote das terras e castelos da família. Os “filhos de ambos, entre os quais se encontrava o nosso Francisco, receberiam, porém o nome de Sales, pelo menos até ao dia em que o senhor de Boisy lhes desse uma de suas terras” (RAVIER, 2010, p. 19). O frágil menino foi batizado no dia 28 de agosto de 1567, na Igreja Saint-Maurice de Thorens.
Durante seis anos Francisco permaneceu como filho único na casa de seus pais. Acontece que alguns de seus irmãos faleceram ao nascer. Seu irmão Gallois nascerá apenas nove anos depois.  Em 1573 o pai envia Francisco para estudar no colégio de La Roche-sur-Fioron. Em 1575 muda para o Colégio de E. Chappuis, de Annecy, onde recebe o Sacramento da Confirmação . Em 20 de setembro de 1578 recebeu a tonsura e neste mesmo ano foi ao Colégio de Clermont onde iniciou as “Humanioris litterare”. Permaneceu um decênio neste colégio, dos onze aos vinte e um anos, tendo estudado gramática para obter o pleno domínio do latim, o curso de humanidades, o curso de retórica, os curso de artes ou filosofia, astronomia, cosmografia, história natural, matemática, música, grego e hebraico. Obtém os títulos de bacharel em retórica e licenciatura e doutorado no curso de artes. Foi classificado como “perfeito em filosofia” e “um, dos primeiros alunos na Universidade”.  Além disso, “entre os 15 e 18 anos frequentou uma espécie de academia de cavalaria, ou da nobreza, que compreende equitação, esgrima, ginástica e dança”
De dezembro de 1586 a janeiro de 1587, Francisco tem sua grande crise existencial. Ele se “julgava predestinado para a condenação pelo juízo infalível de Deus”. Os efeitos da crise do espírito envolvem também o corpo. Fica doente e não quer mais comer nem consegue dormir. Pensava estar predestinado a não ser salvo por Deus. Mas, “de repente, Francisco sozinho supera a crise da maneira mais inesperada, aos pés de Maria” quando reza o Lembrai-vos na igreja dominicana de Santo Estevão de Grès, diante da imagem da Virgem Negra de Paris e fica completamente curado. 
Em 1588 termina seus estudos de humanidade e filosofia. Volta para Sabóia e viaja dali para Pádua. Iniciará os estudos em Direito, como deseja seu pai. O senhor de Boisy designou o reverendo Déage para preceptor de Francisco e de Gallois, que fora junto para estudar em outro colégio da cidade. Escondido do pai, mas com a permissão de Déage, estudará Teologia. Ao chegar em Pádua toma como Diretor Espiritual o jesuíta Antônio Possevino “que lhe transmite o gosto pela Escritura e o orienta ao estudo da mística”.  Sob sua orientação Francisco lê o Combate Espiritual, do padre Scupoli, e redige para si uma regra de vida que ficará conhecida como Regra de Pádua e mais tarde se tornará o Diretório Espiritual[1]. No fim de 1590 fica doente. Está em perigo eminente de morte e pede para que seu corpo seja entregue aos estudantes de medicina a fim de “ser útil pelo menos depois da morte...”, pensamento que revela a crise pela qual estava passando.  Em 5 de setembro de 1591  obtém o doutorado em Direito civil e eclesiástico. Contava com vinte e quatro anos de idade.
Em fevereiro de 1592 Francisco retorna à Sabóia e se torna advogado no Senado de Chambérry (24 de novembro). Aí encontra seu pai que logo lhe arranja um casamento. Mas Francisco deseja o sacerdócio. Conversa com alguns influentes amigos e estes lhe conseguem um cargo importantíssimo na diocese, fazendo disto um artifício para que o senhor de Boisy aceitasse sua vocação. Logo foi nomeado senador no Senado de Chambérry. Recusou. Recebeu, então, uma nomeação de Roma: Deão[2] da diocese de Genebra. Em 9 de maio de 1593 Francisco, sabendo desta nomeação, vai ao pai contar-lhe de seu desejo de ser um homem da Igreja. Leva em companhia Luís de Sales, seu primo sacerdote, e Francisco Deronis[3], além de contar com a intervenção da senhora de Boisy, sua mãe. O pai resiste, mas é convencido[4]. Assim, em 12 de maio de 1593, se torna preboste do Capítulo de São Pedro de Genebra (exilado em Annecy). Mas só será instalado depois de ordenado presbítero.
Em 09 de junho de 1593 recebeu as quatro ordens menores na catedral de Annecy. No dia 11 recebeu o sub-diaconato. Em 24 de junho pronunciou seu primeiro sermão, falando da santa Eucaristia na catedral de Annecy. Em 18 de setembro recebeu o diaconato e em 18 de dezembro do mesmo ano foi ordenado sacerdote por Dom Claudio Granier, na catedral de Annecy. Três dias depois “cantou sua primeira missa”.  Estava com vinte e seis anos de idade.
O duque da Sabóia, Charles-Emmanuel, desejava que esta região voltasse à fé católica, muito mais por motivos políticos que piedosos .[5] Pediu a Dom Granier que enviasse missionários para seu ducado. Este pede a Francisco de Sales que, em 14 de setembro de 1594, vai catequisar o Chablais[6]. Tem em companhia o primo Luís de Sales. Serão quatro anos de duro trabalho. Em 1595 começa as conversas familiares com os protestantes. Redigiu algumas “Meditações”, as Controvérsias, fixando-as em lugares públicos ou metendo-as por baixo das portas [7]. Em 1596 obtém os primeiros frutos de sua missão com o início do movimento de conversões no Chablais.  No dia 9 de abril de 1597 Francisco e Luís de Sales tiveram um primeiro encontro com o sucessor de Calvino, Théodore de Bèze. Travaram um bom diálogo que foi seguido de dois outros encontros. Francisco desejava conduzi-lo à fé romana, o que não conseguiu, mas conservou-se estimado por Bèze.
Em outubro de 1598 é suprimido o culto protestante no Chablais[8] e, por influência rígida de Francisco de Sales, são expulsos os ministros calvinista de Thonon. Depois disso, o preboste vai a Roma chegando ao findar de dezembro. É recebido pelo papa Clemente VIII que, numa segunda audiência, no dia 22 de março de 1599, aplica-lhe o exame canônico habitual, obtendo o êxito de Francisco nas trinta e cinco questões que a corte lhe dirigiu.[9] É, então, nomeado bispo titular de Nicópolis e coadjutor de Genebra (1599)[10]. Em maio de 1600 foi publicado A Defesa do Estandarte da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, o livro que Francisco tinha escrito em resposta a um antigo panfleto do ministro de La Faye (um alto eclesiástico calvinista). Em 1601 (6 de abril) perde seu pai. Em 19 de setembro faleceu seu bispo, Dom Cláudio de Granier. Agora terá que assumir o cargo como pastor de Genebra-Annecy. Depois de um retiro de vinte dias e de redigir uma regra de vida, “que é um pequeno tratado sobre o ideal sacerdotal segundo o evangelho”, em 8 de dezembro de 1602, na igreja de Thorens, é sagrado bispo. Seis dias depois toma posse na catedral de Annecy. Será um bispo reformador no espírito do Concílio de Trento. Vive como pobre[11], reza, escreve[12], catequisa[13], confessa[14], reforma abadias e mosteiros decadentes[15], visita as 450 paróquias, instrui o clero[16] e acolhe a todos sem distinção, ouvindo e orientando como um bom pai. Conquista uma popularidade imensa. Continua sempre pregando[17]. E numa destas pregações tomará contato com a baronesa Joana de Chantal, irmã de Monsenhor André Frémyot, o jovem arcebispo de Bourges, que frequentemente recebia Francisco em sua casa.
Joana era uma mulher austera que procurava um bom diretor espiritual. Viúva aos 28 anos, sofrera muito com seus quatro filhos pequenos e com os maus tratos que recebera na casa do sogro. Teve um diretor espiritual escrupuloso que em nada lhe ajudou . Em 1604, quando foi à pregação quaresmal em Dijon, encontrou-se com o bispo de Genebra, Francisco de Sales. Ela vê nele o diretor espiritual que Deus escolhera. Desta amizade surgirá uma vasta literatura[18] e a Ordem da Visitação de Santa Maria[19], fundada por ambos em 6 de junho de 1610. Antes disso, em 1609, Francisco publica a Introdução à Vida Devota ou Filoteia.
Outro fato de grande importância na vida de Francisco foi a morte de sua mãe, pouco antes da Visitação ser fundada. A senhora de Boisy faleceu em 1 de março de 1610. Francisco herdara dela a personalidade e a devoção. Sua mãe era sempre um modelo de vida cristã. Em 1616 publica o Tratado do Amor de Deus, obra que nos debruçaremos neste trabalho. Desejoso de promover a cultura na sua diocese, em 1606 Francisco fundou em Annecy a Academia Florimontana, sociedade de doutos e literatos. 
Em 1618 Vicente de Paulo vem ouvir as pregações do Advento em Paris feitas por Dom Francisco de Sales. Os dois conversam e se tornam grandes amigos. Em Paris Francisco funda um mosteiro da Visitação e o confia ao jovem padre Vicente. Em 1622 o nomeia superior, ficando Vicente por mais de quarenta anos, até sua morte.   Em 1619 travou relações com a abadessa de Port-Royal, Angélica Arnaud. Visitou-a várias vezes no seu mosteiro e, ao deixar Paris, dirigiu-lhe cartas. Angélica manifestou o desejo de ser Visitandina, mas não obteve licença de Roma, sendo que Francisco considerou isso um desígnio de Deus. Esta abadessa envolveu-se com o jansenismo. Seu estilo pessimista e rigoroso não se deixou penetrar pela doutrina terna e mansa do bispo de Genebra. É uma das páginas tristes da vida de Francisco.  
Nos últimos anos Francisco gastará todo o seu tempo em viagens diplomáticas[20] em favor da Igreja e da Sabóia. Terá especial cuidado com a Visitação e com sua diocese, sem negligenciar os pedidos da santa Igreja, que ora e outra lhe roga favores. Com a nomeação e sagração de João Francisco (21 de janeiro de 1621), seu irmão, como seu coadjutor, vê surgir o desejo de se tornar um ermitão e poder dedicar-se à oração e a escrever (RAVIER, 2010, p. 254-256). Mas isto ficou só no desejo. Sua saúde estava se debilitando. Sentiu-se cansado nas viagens e capítulos que, em nome da Igreja, fazia e presidia.
Em 27 de dezembro de 1622, estando em Lyon, sentiu-se mal. Depois de um dia exaustivo precisou ser posto na cama. Foi tomado por uma forte apoplexia ou acidente vascular cerebral. Em torno da meia noite recebeu os sacramentos. No dia 28 de dezembro de 1622, com pouco mais de cinquenta e cinco anos de idade e vinte anos como bispo e príncipe de Genebra, por volta das 20 horas, veio a falecer. Em 29 de janeiro de 1623 são realizados seus funerais. Em 29 de abril de 1662 foi beatificado em Annecy. Em 19 de abril de 1665 o papa Alexandre VII assina o decreto de canonização e, em 19 de julho de 1877, Pio IX assina o decreto que lhe confere o título de Doutor da Igreja, sendo que o Breve foi publicado em 16 de novembro de 1877. Em 1923 o Papa Pio XI o declarou Padroeiro dos jornalistas e escritores católicos. Sua festa é celebrada em 24 de janeiro, quando foi definitivamente sepultado em Annecy, em 1624[21].  

São várias as obras do nosso santo. Encontram-se divididas em obras editadas por ele mesmo, em edições póstumas parciais e em edições completas. Apresentamos conforme Lajeunie o traz em San Francisco de Sales. El Hombre, el Pensamiento, la Acción (1966, vol. I, p. 21-22), seguido de breve descrição.

Simples Considerações sobre o Símbolo dos Apóstolos. 1597 ou 1598. Reimpressa na Conférence accordée, Paris, 1598. Trata-se de uma pequena obra que Francisco escreveu quando missionário no Chablais em vista de instruir as pessoas na fé católica.
Defesa do Estandarte da Santa Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo, Lyon, 1600. Livro denso, escrito a pedido de Dom Granier em resposta ao libelo de La Faye (ministro calvinista).
Breve Tratado da virtude da Cruz e modo de honrá-la (1597). Obra sem êxito editorial, mas que lança muita luz sobre o debate do momento.
Orações fúnebres... de Philippe-Emmanuel de Lorraine, duc de Mercoeur, 1602. Francisco foi escolhido para pronunciar a oração fúnebre de Lorraine de Philippe Emanuel, duque de Mercoeur e Penthièvre, na igreja metropolitana de Notre-Dame em Paris, em 27 de abril de 1602. A razão da escolha está na estreita relação de sua família com o duque.
Constituições sinodais, Thonon, 1603. Trata-se de determinações em vista da reforma eclesial proposta pelo Concílio de Trento e publicadas para a Diocese. Francisco as refaz, pois Dom Granier já as tinha feito em 1582, no intuito de conduzir bem a diocese. Ambos realizavam o Sínodo diocesano deliberante uma vez por ano com a exigência de que os padres participassem e abertura para os leigos nas sessões públicas.
Aviso aos Confessores (continuação das Constituições). É um escrito dirigido especialmente aos Confessores sobre o Sacramento da Penitência. Estava dentro do esforço empregado nas Constituições sinodais.
Introdução à Vida Devota, Lyon, 1609. “É um verdadeiro e próprio tratado de ascética, adaptado às pessoas que vivem no mundo” (BIANCO, 2011, p. 210). Filoteia é o outro nome da obra. Significa amante ou enamorada de Deus. Por “antonomásia é Luísa Duchastel, a senhora de Charmoisy, a quem Francisco dedica implicitamente o livro” (BIANCO, p. 210), pois a obra nasceu de cartas, memórias espirituais, que Francisco lhe escrevia na qualidade de seu diretor espiritual. Quando ela mostra este tesouro ao padre jesuíta João Fourier, ele se admira e escreve ao bispo para que as publique. Francisco as revisa e publica (BIANCO p. 209). A obra “foi impresso mais de quarenta vezes em vida de seu autor” (VIDAL, 1978, p. 15).
Ritual sacramental, Lyon, 1614. Francisco compôs um ritual para a administração de alguns sacramentos para sua diocese. Na época não havia rituais comuns para a Igreja universal.
Tratado do Amor de Deus, Lyon, 1616. Esta é a obra que abordamos neste trabalho.
Regra de Santo Agostinho e Constituições para as Irmãs religiosas da Visitação, Lyon, 1619. Trata-se na Regra de Vida Religiosa Monacal escrita e entregue por ele à Santa Joana de Chantal e às Irmãs da Visitação.
A De summa Trinitate et fide catholica, publicada em 1606 no Codez Favrianus, aparecida com o nome de Favre. Trata-se de uma exposição sobre as principais heresias calvinistas contra as quais terá de exercer a sua vigilância de legislador (RAVIER, 2010, p. 82).

Cartas, Lyon, 1626. Conjunto de Cartas que o santo endereçara a correspondentes e que foram reunidas e publicadas. Hoje elas formam seis volumes das Obras Completas e totalizam 2103 (BIANCO, 2011, p. 185).
Costumeiro e Diretório, Lyon, 1628. Regras de vida prática e espiritual para o cotidiano das Irmãs da Visitação, que é publicado sobre orientação de Santa Joana de Chantal e agregado às Constituições da Ordem.
Os verdadeiros Entretenimentos espirituais, Lyon, 1629. Em português, está publicada sobre o título de Palestras Íntimas. Trata-se de palestras familiares que o bispo dava às Visitandinas em Annecy. Elas se reuniam com ele e lhe faziam perguntas. Ele as respondia de modo espontâneo, sendo que as Irmãs tomavam nota. Depois de sua morte e de reunirem todas estas palestras, Santa Joana de Chantal e as Irmãs mandaram editar.
Controvérsias, 1870. Corpo de “Meditações” que Francisco escreve e fixa em lugares públicos ou as mete por debaixo das portas a fim de instaurar um vasto diálogo com os habitantes de Thonon. Em 1672, foram impressas numa edição que, infelizmente, é cheia de erros. Em 1821 sai uma segunda edição ainda pior. Finalmente, em 1870 aparece uma edição correta” (BIANCO, 2011, p. 101).

 Edições completas
Toulouse, Pierre Bosc et Aernaud Colombier, 1635; Paris, 1641; Paris, Sébastien Huiré, 1652; Paris, Léonard, 1663, 1669, 1672 (contendo as Controvérsias), 1685.
Não existe edição completa no século XVIII. Herissant, em 1758, publica as Cartas em seis volumes e os Opúsculos em quatro.
No século XIX, Obras Completas: Blaise, Paris, 1821; Viès, PARIS, 1856-1858; Migne, 1861-1862.

Quando escreveu a Filoteia, disse Francisco: “Eu quero instruir e guiar os que vivem nas cidades, no seio da família, na Corte e palácios dos grandes...” (IVD, 2004, p.18). Surpreendeu, pois o título de sua obra rezava Introdução à vida devota. Matizava, assim, um modo de compreender a vida de perfeição. Perfeição era o termo preferido pelos mestres do espírito da época, uma vez que “devoção” soava antiquado (BIANCO, 2011, p. 214). Ele não teme usar o termo “devoção” ligando-o diretamente à vida cristã: “Tu aspiras à devoção, queridíssima Filotéia, porque és cristã e sabes que é uma virtude sumamente agradável à divina Majestade” (IVD, 2004, p. 27). Para Francisco o cristão é devoto e “la devoción outra cosa no és que la llamada universal a la santidad” (VIGUERA, 1990, p. 165). Ele a descrevia nestes termos:
A verdadeira devoção, Filotéia, pressupõe o Amor de Deus ou, melhor, ela mesma é o mais perfeito amor a Deus. Esse amor chama-se graça, porque adereça a nossa alma e a torna bela aos olhos de Deus. Se nos dá força e vigor para praticar o bem, assume o nome de caridade. E se nos faz praticar o bem freqüente, pronta e cuidadosamente, chama-se devoção e atinge então ao maior grau de perfeição (IVD, 2004, p. 29).
A vida devota não é vida de devoções, mas vivência radical da fé.[22] É o amor de Deus, fervente e abnegado. Em termos pós Vaticano II diríamos, vivência da vocação batismal (LG 39). É essa atenção amorosa para com a vontade de Deus, “numa palavra, a devoção não é nada mais do que uma agilidade e uma viveza espiritual, da qual ou a caridade opera em nós, ou nós mesmos, levados pela caridade, operamos todo o bem de que somos capazes” (IVD, 2004, p. 30).
Usando uma analogia, típico de seu método, nosso santo diz que a caridade e a devoção só se diferenciam entre si como a chama e o fogo (IVD, 2004, p. 31). E explica que a caridade é um fogo espiritual. Uma vez bem aceso se chama devoção (IVD, 2004, p. 31).
Não resta dúvida que “Francisco de Sales creia que la ‘devoción’ era necessária para vivir ‘como verdadero Cristiano’ en el mundo’” (LAJEUNIE II, 1966, p. 246-247). Seu mérito está em fazer seus contemporâneos entenderem
que la devoción no es sombría, ni triste, ni aburrida, que al contrario, es una fuente de alegría pues consiste en “um cierto grado de excelente caridad que nos hace prontos, activos y diligentes para observar los mandamientos de Dios y para hacer gustosamente todas las obras buenas que podamos” incluso las que no están mandadas “sino solamente aconsejadas o inspiradas” (LAJEUNIE II, 1966, p. 246-247).
Sendo assim, a vida devota, a vida cristã, o chamado universal a santidade está ao alcance de todos.  Basta acomodar a prática da devoção à nossa saúde, às ocupações e obrigações de cada um (IVD, 2004, p. 36). Francisco foi um vanguardista: nascia assim (com Francisco de Sales) aquele apelo aos leigos, aquele cuidado pela consagração das coisas temporais e pela santificação do cotidiano, sobre as quais insistirão o Concílio Vaticano II e a espiritualidade do nosso tempo” (BENTO XVI, 2011).[23]
Para compreender o Tratado é preciso levar isto em consideração. Para Francisco, todos somos chamados a uma vida cristã autêntica e, a seu modo próprio, todos podemos corresponder.

Ao falar da perfeição da vida cristã, da vida devota, Francisco pressupõe o amor de Deus (IVD, 2004, p. 29). E ao escrever seu Tratado concede-lhe o título do Amor de Deus.  Os autores falam no conteúdo prático de suas obras[24]. Como descrever então a experiência do amor divino?
A “contemplação da personalidade de Francisco de Sales nos leva indefectivelmente à constatação de que o Amor de Deus está no centro do seu pensamento, de sua vida de sua ação” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 24). A grande e primeira figura desse amor é sua jovem mãe, dotada de uma piedade alegre e de uma disposição ao trabalho que imprimiram no menininho uma imagem amorosa de Deus solícito e próximo, tanto que “la primeira frase que San Francisco de Sales recuerda haber pronunciado em su niñez es ésta: ‘Dios y mi madre me amam mucho”’ (SALESMAN, 1990, p. 7). Em sua juventude, o episódio de sua cura na igreja dominicana de Santo Estevão de Grès, diante da imagem da Virgem Negra de Paris, pode ser citado como grande manifestação do amor divino (SALESMAN, 1990, p. 39).
Lajeunie (II, 1966, p. 311) diz que Francisco “es um enamorado: para eso nació, está hecho para el amor y para el amor humano. Corazón sensible, tierno, apasionado, ‘corazón que se apega’ y que se apega tanto que teme apegarse demasiado y mal”. Dele se afirma que “nunca foi surpreendido em falta de amor” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 25).
Quanto ao amor a Deus ele crê que todos têm a inclinação natural de amar o Senhor.[25] Mas vê em si mesmo a confirmação de sua certeza. Certa vez ele escreveu a Santa Joana: “Não existe uma outra pessoa no mundo, eu acho, que ama tão cordial, ternamente, e falando com plena confiança, de maneira mais amorosa do que eu; (...) comprouve a Deus fazer assim o meu coração, porque me disseram que ame somente a Deus e todas as almas por Deus” (RAVIER, 1982, p. 151). Sim, Francisco faz a experiência do amor que tem dois braços: um abraça a Deus e outro o irmão (LAJEUNIE, 1983, p. 77). Sua vida comprova este movimento que o Tratado nos fará entender como amor afetivo e efetivo.
Em uma de suas cartas escreve “Tudo grita nos ouvidos do nosso coração: Amor, amor” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 28). Mas Deus não força e nem o nosso amor deve ser forçado. A partir de sua experiência, Francisco explica a quem se atormenta:
Pobres pessoas! Atormentam-se para encontrar a arte de amar a Deus e não sabem que a única arte consiste em amá-lo. Pensam que é necessária certa destreza para adquirir este amor, e, no entanto, somente se consegue mediante a simplicidade... não existe mais arte do que amar, quer dizer, praticar as coisas que agradam a Deus, pois é o único meio de encontrar e conseguir este amor sagrado, sempre que esta prática se leve a cabo com simplicidade, sem perturbar-se nem inquietar-se” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 29)
Assim, a experiência do amor divino é natural e gratuita, pois Deus é amor e o ser humano foi criado para o amor. Compreende, ainda, que todos os mistérios da fé são mistérios de amor: a criação, a encarnação, a redenção, a nova filiação divina, a Igreja, os sacramentos.  Portanto, Francisco de Sales “nos ensina que no grande desafio da nossa vida é olhar tudo a partir da ótica do amor e viver manifestando o amor com o qual somos amados, escolhidos e criados” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 26).




[1] A Regra de Pádua é um programa de vida escrito e vivido pelo próprio Francisco no seu tempo de estudante em Pádua. Ela guiava as ações de todo o dia e possui grande semelhança com os exercícios espirituais que Santo Inácio de Loyola propunha. No ano depois da morte de São Francisco, Santa Joana de Chantal (1572-1641) a usou, junto com umas poucas outras fontes, para criar o Diretório Espiritual, adaptado para as Irmãs da Visitação. Padre Luís Brisson (1817-1908) o readaptou a seus dois Institutos:  Oblatos e Oblatas de São Francisco de Sales (1875). Para os Oblatos ele é o meio privilegiado de adquirir o espírito de São Francisco de Sales (CONSTITUIÇÕES 14, 1989, p. 10).

[2]Deão (decanus, “chefe de dez” monges ou clérigos) ou preboste (praepositus, (“posto à frente”), indicado pelo papa, preside o cabido, celebra a missa se o bispo estiver ausente)” (COSTA, 2014, p. 97).

[3] Cônego da catedral, “experto negociador de benefícios, y que tenia en Roma ‘muy buenas relaciones’” (LAJEUNIE I, 1966, p. 201).
[4] “El Señor de Boisy se veía imposibilitado, por falta de dinero, de dar un buen cargo a su hijo, y resulto que ese hijo estaba en posesión del primer cargo de la diócesis después del de Obispo” (LAJEUNIE I, 1966, p. 201).
[5] Francisco de Sales faz grandes elogios a este duque no prefácio do Tratado (p.17).
[6] O Chablais é aquela região de dez léguas de cumprimento e cinco de largura, orlada a norte pelo lago Léman e a sul pelos montes de Faucigny. Thonon, situada à beira do lago, assemelha-se a uma pequena capital (RAVIER, 2010, p. 67).
[7] Deste método inovador advém seu título de Patrono dos jornalistas e escritores católicos (RAVIER, 2010, p. 75). “Depois de sua morte, os folhetos serão encontrados em perfeita ordem no castelo de La Thuille e, em 1658, quando o Papa Alexandre VII proclamar Francisco beato, serão oferecidos ao próprio papa. Este, proveniente da nobre família romana dos Chigi, passa-os a seus herdeiros. Em 1672 os imprimirão com o título de Controvérsias numa edição que, infelizmente, é cheia de erros. Em 1821 sai uma segunda edição ainda pior. Finalmente, em 1870 aparece uma edição correta” (BIANCO, 2011, p. 101).
[8] “Esta supresión fue pues, um acto formal del Príncipe únicamente. El decreto, debidamente sellado y firmado por Boursier, tenia fuerza de ley en virtud de la Constituición. Suprimia de plumazo la libertad de culto en el Chablais, aplicando las leyes del país” (LAJEUNIE I, 1966, p. 381).
[9] Clemente VII, diante dos eminentíssimos cardeais da cúria romana, depois do exame que preside pessoalmente para conferirlhe o episcopado, desce do seu trono, o abraça, ajoelhase diante dele e pronuncia estas memoráveis palavras: “É verdade que até agora nenhum dos que examinamos o fez de forma tão satisfatória. Bebe da água de tua cisterna e dos caudais do teu poço. Derramemse para fora tuas fontes e corram pelas praças as águas de teu rio”. (ALBUQUERQUE, 2007, p. 2).
[10] “Mas não quer ser chamado de bispo, não veste as insígnias episcopais, continua como simples prepósito da catedral. Não aceitará a consagração episcopal, a não ser depois da morte do seu antecessor” (BIANCO, 2011, p. 130-131). 
[11] Para Francisco, “la gloria de un Obispo era caminar modestamente en seguimiento de Cristo pobre. Para ello redujo todo lo posible  su servidumbre; no tenia carroza, solamente dos criados, un cocinero, un lacayo y muy al principio, un secretario; un mal sastre le hacia la ropa interior con sus viejas sotanas. Y sus servidores deben reflejar su sencillez: ‘no usa ropa de seda pero la quiere muy limpia y arreglada’, no lleva ‘escarpines con las sandálias o suecos’ pero por la ciudad va siempre ‘con roquete y muceta’, igualmente quiere que sus criados vayan vestidos con sensillez, ‘sin penachos, ni espada, ni trajes de colores brillantes, ni cabelos largos, ni bigotes engomados’ (XXII, 111-115). Los muebles de Monseñor son ‘decentes y conformes a su sencillez’; su mesa es ‘frugal pero abundante’ mejorada con algún ave cuando hay invitados. Él, que antes de dejar todo por la Iglesia, usaba ‘medias de estambre tejidas a mano’ y ‘guantes perfumados’ y ‘papel dorado’ y ‘polvos’ (XIX, 89), ahora no emplea jamás ‘ni guantes ni manguitos’. Está contento de no tener más que una casa de alquiller y ni siquiera ésa es la pobreza com que soñaba: ‘Me molesta mucho, decia, no ser pobre; siempre he deseado serlo y ese deseo nunca se me há hecho realidade puesto que nunca me há faltado nada’. Goza de una ornada suficiência, y es ésa la pobreza que conviene al Obispo y a sus sacerdotes” (LAJEUNIE II, p. 30-31).
[12] “As cartas são para Francisco outro modo extraordinário para difundir a Palavra de Deus. Nos tempo de atividades normais para o governo da diocese, segundo testemunhou seu secretario, ele escreve do próprio punho, em média, 20 até 30 cartas por dia. Deve ter escrito pelo menos 4 mil” (BIANCO, 2011, p. 183). 
[13] Preparou um Regulamento para o ensino do catecismo no qual insere as sugestões do Concílio de Trento e sua própria experiência (BIANCO, 2011, p. 170).  Nos domingos, ordena que os padres reservem duas horas para dar catequese às crianças. Ele mesmo fará isso na catedral e nas visitas às paróquias (BIANCO, 2011, p. 187).
[14] Redigiu “um Memorial para os Confessores, exuberante de conselhos hauridos de sua inesgotável caridade pastoral” (BIANCO, 2011, p. 170). 
[15] Sua diocese contava com 5 abadias, 6 priorados conventuais, 4 cartuxas, 5 conventos de mendicantes (BIANCO, 2011, p. 173). 
[16] Escreveu numa Exortação: “A ignorância é pior que a malícia... Exorto-os a estudar com afinco, para que, sendo instruídos e de bom comportamento, sejam irrepreensíveis e estejam sempre prontos a responder a quem lhes põe questões a respeito da fé” (BIANCO, 2011, p. 170). 
[17] “O Concílio de Trento tinha advertido: ‘Pregar é o dever principal do bispo’. Francisco tomou-o a sério. Ele define a si mesmo como pregador ‘franco e manco’, mas toda sua vida está aí a demonstrar o contrário. Nos último anos, escreverá numa carta em italiano ter ‘pregado 3 ou 4 mil sermões’. Os que chegaram até nós ocupam 4 dos 26 volumes de seus escritos” (BIANCO, 2011, p. 179). 
[18] Em 18 anos Francisco escreveu mais de 300 cartas à Joana (BIANCO, 2011, p. 201). Ela respondia sempre, mas, infelizmente, Chantal “destruiu quase todas as suas cartas dirigidas a Francisco” (RAVIER, 2010, p. 211).
[19] “Será ‘uma congregação de senhoras de grande virtude e qualidade. Elas se dedicarão a muitas obras de caridade em favor dos pobres e dos doentes. É a seu serviço que essas almas benditas querem, em parte, consagrar-se...’”, (BIANCO, 2011, p. 230).  Mas a congregação é transformada em Ordem Monástica, com votos solenes e com o compromisso da estrita clausura. As irmãs são proibidas de fazer visitas aos casebres e cortiços. O breve pontifício data de 23 de abril de 1618 (BIANCO, 2011, p. 245). Quando da morte de Francisco a Ordem “contará com 13 mosteiros, em 1641, na morte da madre Chantal, contará com 87” (BIANCO, 2011, p. 246). 
[20] Foi sempre um homem político e esteve “encarregado de missões diplomáticas em nível europeu, e de tarefas sociais de mediação e reconciliação” (BENTO XVI, 2011).
[21] Por 303 anos (1666-1969) foi observada no dia 29 de janeiro, uma data que ainda é observada pelos vetero-católicos (CALENDARIUM ROMANUM, 1969, p. 115).
[22] “Por devoção se entendia a vida cristã vivida com seriedade, de maneira coerente e comprometida. Como explicam seus estudiosos, em São Francisco de Sales, os termos santidade, perfeição cristã, perfeição da caridade, devoção são sinônimos. É também o que se conclui do texto da exortação apostólica de João Paulo II sobre os fieis leigos, ao falar da espiritualidade laical. Efetivamente, Francisco de Sales não costuma usar a palavra espiritualidade. E, mesmo que fala de perfeição e de santidade, utiliza com frequência e comumente o termo devoção para designar precisamente a perfeição da caridade. Neste sentido, podemos falar da mensagem salesiana de santidade” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 4).
[23] Efetivamente, foi o Concílio Vaticano II quem transmitiu esta mensagem, especialmente no capítulo 5 da Constituição Lumen Gentium, dedicado a explicar a “vocação universal à santidade na Igreja”. (...) Com justiça, Paulo VI o chamou de precursor do Concílio Vaticano II e desejando impulsionar na Igreja os frutos do Concílio, declara: “Nenhum melhor que Francisco de Sales, entre os recentes Doutores da Igreja, soube, com profunda intuição de sua sagacidade, prever as deliberações do Concílio” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 8).
[24] Abbe Jacques Leclerq (1957, p. 39) o chama de “apóstolo prático”.
[25] “Mais de vinte vezes o Santo Doutor repete no seu Tratado do amor de Deus que o homem tem uma ‘inclinação natural de amar Deus’” (ALBUQUERQUE, 2013, p. 28).

REFERÊNCIAS

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