Espíritos Impuros e Exorcismo. Análise exegético hermenêutica de Mc 5, 1-20


          Os evangelhos são o testemunho mais sagrado que os cristãos possuem sobre Jesus de Nazaré. A herança que as comunidades primitivas nos transmitiram através deles serve como estrela guia rumo ao Reino que o Nazareno veio instaurar. Quase dois mil anos depois de escritos, continuam sendo fonte e cume da liturgia, da instrução e da ação de milhões de fieis espalhados pelo mundo inteiro. Com uma riqueza inigualável e, envolvidos por uma áurea sagrada outorgada pela fé, os evangelhos suscitam indagações e geram esperança. Acima de tudo, apontam para uma realidade plasmada pela presença de Deus e pelo mandamento do amor, a verdadeira doutrina cristã. Também identificam o mal - “qual é o teu nome?” – e o bem para que o ser humano, iluminado por esta Boa Notícia, não se confunda em seu caminho.

          Os chamados evangelhos sinóticos – Marcos, Mateus e Lucas – apresentam os traços principais do Senhor Jesus, o Messias esperado, encarnado, morto e ressuscitado para a salvação do mundo. Resultaram da necessidade e do esforço das comunidades no cristianismo inicial que não queriam perder a memória de Jesus, nem permitir que ela fosse perturbada ou esquecida. Neles, fatos reais e simbólicos se misturam para apontar o Cristo e o Reino, levando em conta a situação particular de cada comunidade de onde provém o autor, a autoria.

          No presente trabalho tomaremos apenas Marcos, centralizando-nos na perícope do capítulo cinco, versículos primeiro até o vinte, onde está narrada a cena da expulsão dos espíritos impuros do endemoninhado geraseno. Contextualizaremos o evangelho marcano, levando em conta a comunidade, sua localização, seus conflitos e buscas. Analisaremos o contexto que a perícope apresenta, inclusive, a concepção de espíritos maus. Depois seguiremos com a análise literária, apresentando o texto em si, seu contexto e a sinopse. Seguiremos com a análise cristológica, focando os personagens da perícope e as atitudes de Jesus, bem como suas palavras. Por fim, nos dedicaremos à hermenêutica, tendo a preocupação de fazê-la em comunhão com a realidade atual.

          Somos conscientes das limitações e da possibilidade de expandir o estudo. Entretanto, o conteúdo apresentado possui caráter genuíno e almeja ser o resultado de uma dedicada pesquisa que visa aprofundar a mensagem dos evangelhos sinóticos na vida de quem o elaborou e de quem possa a ele ter acesso.

1 CONTEXTO DO EVANGELHO DE MARCOS

          O Evangelho de Marcos foi escrito depois da morte de Pedro, que aconteceu durante as perseguições do Imperador Nero por volta de 64 d. C.. O Evangelho em si, especialmente o cap. 13, indica ter sido escrito antes da destruição do Templo em 70 d.C.. A maior parte das evidências sustenta uma data entre 66-70 d.C. (GLAAB, 2004, p. 100). Em 64 d.C., Nero acusou a comunidade cristã de colocar fogo na cidade de Roma, e por esse motivo instigou uma temerosa perseguição na qual Paulo (67 d.C.) e Pedro morreram. Naqueles mesmos anos os cristãos da palestina tinham se rebelado contra a invasão romana. Disso resultavam muitos conflitos, até mesmo entre judeus.  Em 70 d.C. o Templo foi profanado (CNBB, 1996, p. 18), uma forte agressão ao povo judeu. A Palestina estava sob domínio de Roma desde 63 a.C., quando Pompeu conquistara a região. Depois disso, seguiu-se “um período de quase uma geração de distúrbios, em que facções asmonéias e exércitos romanos rivais disputavam o controle da área (HORSLEY E HANSON, 1995, p.44). Instaurou-se então, um política diferente

Os romanos controlavam politicamente os povos conquistados através da nomeação de legados ou procônsules, ou a partir dos procuradores. O rei não tinha lugar no sistema romano, mas vale lembrar que na Palestina se impôs uma monarquia, comandada por Herodes Magno e, após sua morte, pelos seus filhos” (SCHIAVO e SILVA, 2000, p.21). A ideologia da Paz Romana, por sua vez, criava e sustentava o sistema da escravatura, e a escravatura como sistema, escravatura elevada à potência como acontecimento natural este cinismo dos dominadores torna claro que a liberdade da paz romana é, em primeira linha, liberdade romana (WENGST, 1991, p.40). (TEZZA, 2006, p. 20).

          Quanto à economia da região, sabe-se que toda a produção vinha das aldeias, de uma economia familiar de subsistência. O estado classista se apropriava dos bens produzidos através da cobrança do tributo e do controle do comércio. Assim, a

economia baseada principalmente no latifúndio gerava endividamento, perda da terra e escravidão. Os escravos eram recrutados como pagamento de dívidas e hipotecas ou eram prisioneiros de guerras (REIMER, 2006, p.87-89). Senadores, cavaleiros e decuriões constituíam os grupos de maior poder social. Aceitos pela população exerciam poder sobre ela e sobre os principais meios de produção. A estrutura socioeconômica da sociedade romana pode, por fim, ser descrita como uma estrutura de categorias que no todo tinha caráter de classe (REIMER, 2006, p.91). (TEZZA, 2006, p. 21).

          A partir dos anos 40 a.C. até o ano 4 d.C., Herodes alia-se a Roma e é nomeado rei dos judeus. Depois de sua morte, seus filhos assumem a governança: a região da Galileia e da Pereia fica sob o controle de Herodes Antipas (4 a.C. a 39 d.C.) e a da Judéia e da Samaria passa a ser controlada por Herodes Arquelau (MÍGUEZ, 1995, p.24). Roma depõe Arquelau e transforma a Judeia em província romana, governando-a por intermédio de procuradores (SCHIAVO e SILVA, 2000, p.116). O período da

administração direta do Império Romano sobre a Palestina acentuou o processo de concentração das terras nas mãos de uns poucos proprietários, seja pela política de compensação a generais e altos funcionários romanos, seja pela política tributária. A cobrança de altos tributos, impostos e de diversas taxas sobre a circulação de mercadorias e pessoas (pedágios e taxas alfandegárias) gerou uma grande massa de endividados. “Camponeses livres perdem suas terras e passam a trabalhar como mão-de-obra escrava ou assalariada: isto produziu um aumento da pobreza no campo e uma concentração da riqueza no âmbito urbano (MÍGUEZ, 1995, p.25). A Galileia, por ser a região mais fértil da Palestina, possuía o maior índice de latifúndios e, conseqüentemente, de pobreza. (TEZZA, 2006, p. 21).
          Em 66 d.C, o procurador romano, Floro, roubou parte do dinheiro do templo. Agravou a situação de opressão. Alguns judeus, então, saíram às ruas de Jerusalém pedindo esmolas aos romanos. O procurador não gostou da atitude dos judeus e mandou soldados a Jerusalém, para saquearem a cidade e ofenderem o povo com gestos ostensivos (MOSCONI, 2001, p.20). Estourou a chamada Guerra Judaica (de 67 d.C. a 73 d.C.). Ela consistiu na tomada de Jerusalém por diferentes grupos do Judaísmo e na represália romana. Na Páscoa de 70 d.C., Tito destruiu as muralhas de Jerusalém e incendiou o templo. Terminou a rebelião.

          Não podemos desconsiderar que o Evangelho de Marcos possa ter sido escrito na Galileia. Por isso, se faz mister descrevê-la. Esta região apresenta características distintas de Jerusalém, em decorrência de sua localização geográfica e da formação da população local. Segundo Myers (1995, p.83), a Galileia era encarada com desconfiança geral pela hierarquia de Jerusalém. Isto por causa da mistura de povos e costumes, por ter se tornado centro da exploração econômica das autoridades religiosas judaicas de Jerusalém e por manter boas relações comerciais com as cidades vizinhas (TEZZA, 2006, p. 21). Não foge muito ao contexto da antecessora região por nós descrita.

1.1       A Comunidade de Marcos 


          Não é fácil identificar onde estava localizada a comunidade de Marcos. Pápias de Hierápolis (120 d.C.) atribui o evangelho a Pedro, e a redação a seu discípulo Marcos. Este teria aprendido de Pedro tudo que relata sobre Jesus (GNILKA, 1986, p.39; BROWN, 2004, p.206.249). Após a morte de Pedro em Roma, segundo a tradição, ele teria redigido o que ouvira. Esta teoria diz que o evangelho de Marcos foi escrito em Roma, justificando-se, assim, os erros de localização geográfica cometidos pelo narrador ao descrever as viagens de Jesus e também o uso de vários termos aramaicos no texto (MYERS, 1995, p. 68).

          Myers (1995, p.68), indica outra localização para a comunidade de Marcos: a Galileia. Segundo ele, as várias citações da Galileia que aparecem no evangelho (1,9.14.28; 3,7-8;14,28; 16,6-7; 15,41), levam a esta dedução.  Vaage (1998) sugere outra localização: a região siro-palestina. Assim, o evangelho estaria direcionado a comunidades formadas por um grande número de gentios (GNILKA, 1986, p.41), e também por judeus que se retiraram de Jerusalém por não compactuarem com a estrutura do templo. Essas comunidades teriam forte

influência de Paulo (VAAGE, 1998, p.25). Essas igrejas se reuniam em casas, que significam a relação íntima com Jesus (SOARES, 1999, p.24). Estavam sempre a caminho. O caminho e a caminhada são símbolos da missão de Cristo, aponta também para a cruz, realidade muito presente na segunda geração de cristãos.

1.2       O Evangelho de Marcos


          Vale começar com a observação de Vasconcelos (1998, p.09): “cada um dos evangelhos apresenta Jesus a partir de uma determinada realidade”, ou seja, “cada evangelho apresenta Jesus partindo da vida e dos desafios de uma certa comunidade”. O de Marcos não foge a esta regra e talvez seja o que mais está inserido dela, pois é o mais antigo (CNBB, 1997, p. 5).

          Este Evangelho não apresenta autor, mas a antiga tradição é unânime em dizer que o autor foi João Marcos, seguidor próximo de Pedro (1Pe 5.13) e companheiro de Paulo e Barnabé em sua primeira viagem missionária. O mais antigo testemunho da autoria de Mc tem origem em Papias, bispo da Igreja em Hierápolis (cerca de 135-140 d.C.), testemunho que é preservado na História Eclesiástica de Eusébio. Papias descreve Marcos como “interprete de Pedro” (Frangiotti; Nabeto, 2013).[1] Embora a Igreja antiga tenha tomado cuidado em manter a autoria apostólica direta dos Evangelhos, os pais da Igreja atribuíram coerentemente, este Evangelho, a Marcos, que não era um apóstolo.[2]

          O segundo evangelho da organização canônica da bíblia

apresenta uma história bem simples: Jesus, depois de batizado por João Batista, proclama a chegada do Reino de Deus, primeiro na região da Galileia e, depois (a partir de 10,1), sobe para Jerusalém, onde entra em conflito com as autoridades e morre na cruz. Pouco de pois de sua morte, no sepulcro vazio, um anjo anuncia que ele ressuscitou. (CNBB, 1997, p.5)

          O novo para a comunidade onde nasce o evangelho de Marcos não são as histórias sobre Jesus ou as dificuldades e problemas do tempo em que é escrito, mas “o seu jeito de arrumar e contar as coisas” (CNBB, 1996, p.21). A mensagem evidente é o modo de ser seguidor de Cristo e aí percebemos um destaque muito grande para os discípulos. Estes apresentam defeitos e resistências (4,13. 40. 41; 6,13. 52; 8,20-21. 32; 7, 18; 9,18.32.34.38; 10,13.32-34.36-36.41; 14,10.37.40. 44.50.71-72.), mesmo assim o Senhor permaneceu sempre com eles. Ao informar sobre Jesus, Marcos tem o desejo de formar Jesus nas comunidades a partir de cada cristão. Em outras palavras: mais importante que o Cristo histórico de trinta anos atrás é o Cristo vivo no meio da comunidade (CNBB, 1996, p.21-24).

          Outro dado muito particular da redação marcana é o chamado “segredo messiânico”[3]. A confissão de Pedro em Cesareia de Felipe (8,27-30) o revela como Messias, mas Jesus não quer que isto seja conhecido por todos, será com os seus atos e sinais (milagres, curas, exorcismos, ensinamentos) que o Messias deverá ser reconhecido. Como Messias ele é também, Filho de Deus e Filho do Homem, duas expressões que revelam a missão do Messias. Segundo a introdução a este Evangelho contida na Bíblia Edição Pastoral (1994), Marcos escreveu o seu Evangelho com a finalidade precisa de responder à pergunta: “Quem é Jesus?”. Respondendo a esta pergunta e o declarando Messias, Filho de Deus e Filho do Homem, Jesus é inserido no contexto do judaísmo, uma vez que os Judeus o esperavam. Estes títulos são próprios da tradição israelita. Mas o Messias deste Evangelho é para além do Antigo Testamento:

“Jesus não será somente o Messias no final dos tempos, segundo o conceito de Filho do Homem do profeta Daniel 7. Jesus não somente foi feito Messias depois da ressurreição. Jesus era o Messias quando estava com os seus discípulos, andando pelos caminhos da Galileia” (1999, p. 37). Nesse sentido, pode-se perceber que em Israel ninguém tinha imaginado semelhante Messias, pois n’Ele tudo parecia contradizer a messianidade (COMBLIN, 1999, p. 36-42).

          Entretanto, este que contradiz a ideia presente de messias possui um poder e uma autoridade que remete a Deus. Ele manda até mesmo nos espíritos maus.


1.3 Uma estrutura possível para o evangelho de Marcos[4]


Há diversas propostas de estruturas para o evangelho de Marcos. Para uma visão de conjunto, optamos pela divisão em três partes, seguindo o ministério de Jesus na Galileia e nos seus arredores, em seguida a caminhada para Jerusalém e os últimos acontecimentos em Jerusalém. Eis um breve esquema:

1) Primeira parte (1,1-8,26): a atividade de Jesus na Galileia e nas regiões vizinhas.

Nesta etapa, temos a formação da comunidade que se encontra com Jesus sempre em uma casa. A comunidade enfrenta vários problemas externos e internos, a saber: fome, doenças, individualismo, preconceito e, especialmente, a tentação de seguir o messias como rei poderoso (Mc 1,34.44; 3,12; 5,43; 6,30-44; 7,36). Essa parte termina com a cura do cego de Betsaida (Mc 8,22-26), indicando que a comunidade precisa abrir os olhos para compreender que Jesus é o Messias-servo.

2) Segunda parte (8,27-10,52): a viagem para Jerusalém a partir da Galileia. É um caminho para compreender e aprofundar Jesus como o servo sofredor com os três anúncios da Paixão (Mc 8,31-33; 9,33- 37; 10,32-34). É uma catequese sobre o seguimento de Jesus na vida cotidiana da comunidade. Ao anunciar o “caminho da cruz”, Jesus combate e corrige os discípulos que aspiram a poder e privilégio, que transparecem na figura do messias poderoso como Davi. Os versículos finais apresentam a cura do cego Bartimeu, que joga o manto, gesto que significa abandonar a visão messiânica de rei e seguir Jesus no caminho da cruz (Mc 10,46-52).

3) Terceira parte (11,1-16,8): o ministério de Jesus em Jerusalém com a sua paixão, morte e ressurreição. A prática libertadora de Jesus está em conflito com os poderes do mundo, por isso ele é condenado e morto como subversivo. Mas Deus não abandona o justo (Sb 2,18) e o ressuscita (Sl 22). Essa parte termina com a ordem de voltar para a Galileia, o local onde Jesus começou e exerceu a maior parte de sua prática libertadora.

4) Acréscimo posterior (16,9-20): Como terminar um evangelho com o medo e o silêncio? Os versículos finais foram acrescentados depois e constituem uma síntese dos relatos das aparições de Jesus ressuscitado. Na origem, o evangelho era uma obra sem conclusão. Ela está em aberto e depende da pessoa que lê dar a sua resposta... É preciso ter coragem para voltar à Galileia. O evangelho de Marcos termina com uma ordem e o medo como resposta: “‘Não vos espanteis! Procurais Jesus de Nazaré, o Crucificado. Ressuscitou, não está aqui. Vede o lugar onde o puseram. Mas ide dizer aos seus discípulos e a Pedro que ele vos precede na Galileia. Lá o vereis, como vos tinha dito’. Elas saíram e fugiram do túmulo, pois um temor e um estupor se apossaram delas. E nada contaram a ninguém, pois tinham medo...” (Mc 16, 6-7). As mulheres recebem a ordem de comunicar aos seus que ele voltaria para a Galileia. Elas ficaram com medo, fugiram e nada disseram. É preciso afastar-se de Jerusalém, lugar de centro do poder, e voltar à Galileia, o lugar onde tudo começou. Segundo o evangelho de Marcos, foi na Galileia que Jesus realizou grande parte de sua atividade missionária. Voltar à Galileia é assumir o projeto de Jesus, e isso causa medo. Acreditar que Deus ressuscitou

Jesus é reafirmar a fé em Deus como o Senhor da vida. Apesar do medo, há uma grande esperança para os que seguem Jesus. A nossa missão é anunciar que Cristo Ressuscitou e nos precede na nossa Galileia: lugar onde a vida está ameaçada. Assumir o projeto de Jesus dá medo e, muitas vezes, é melhor fugir. É preciso viver a experiência de que há uma esperança: a força da vida é maior do que a morte. É preciso acreditar que “a pedra já fora removida!”.

1.4       A concepção de espíritos maus


Irineu José Rabuske (2010, p.188) afirma que Jesus era exorcista e que esta atividade era de importância primeira em sua prática. O mesmo autor diz:

Nesse sentido, a narrativa de Marcos é incisiva. Logo após ter granjeado alguns discípulos, Jesus, no sábado, dirige-se à sinagoga de Cafarnaum. Lá, logo é confrontado com um possesso. Jesus, sem pestanejar, entra em ação, ordena ao espírito impuro para que saia do homem, o que realmente acontece, despertando a admiração geral dos presentes (2010, p.188).


          São muitas as vezes que os evangelhos mencionam esta prática. Em Marcos aparecem 14 vezes (1, 34. 39; 3,11. 15. 20-30; 4,33-37; 5,1-20; 6,7. 13.7,24-30; 9,14-27. 38-41; 13,32; 16,17). Por exorcismo compreende-se a “ação que tem por fim expulsar os demónios ou libertar da influência diabólica” (RITUAL ROMANO, 1998, p. 15). Vamos compreender quem são estes que, muitas vezes, são expulsos nos evangelhos. Wegner (2003, p.85-87) faz a distinção dos diversos termos utilizados nos Evangelhos.

·    Daímon: é masculino, singular: demônio. A única passagem a usar o termo é a de Mt 8.31 (no plural, masculino: daímones).

·    Daimónion: é adjetivo neutro, singular de daímon. No plural = daimónia!: demônio(s). É empregado, aproximadamente, 63 vezes no NT (Mt 7.22; 9.33,34; 10.8, etc.).

·    Daimonízomai: Ser endemoninhado, ser possesso por um demônio (Mt 4.24; 8.16,28,33; 9.32; 12.22; 15.22; Mc 1.32; 5.15,16,18; Lc 8.36; Jo 10.21).

·    Pneúma: espírito (Mt 8.16; Lc 9.39). Este termo pode vir qualificado pelos seguintes adjetivos: Pneúma álalon: espírito mudo (Mc 7.37; 9.17,25); Pneúma álalon kaì kofón: espírito mudo e surdo (Mc 9.25); Pneúma asthenéias: espírito de enfermidade (Lc 13.11); Pneúma akátharton: espírito impuro (Mt 10.1; 12.43; Mc 1.23,26,27; 3.11,30; 5.2,8,12,13; 6.7; 7.25; 9.25; Lc 4.36; 6.18; 8.29; 9.42; 11.24); Pneúma daimoníou akathártou: espírito dum demônio impuro (Lc 4.33); Pneúma ponerón: espírito maligno/mau (Lc 7.21; 8.2 – cf. At 19.12,13,15,16).


          No caso de Mc 5,1-21, o título usado é “espírito mau” (v.2.8.12.13), “demônio (endemoniado)” (v.6.15.16.18) e “Legião” (v.9.15). Wegner (2003, p.88) escreve que há três razões mais citadas para espírito mal. Primeira:

a impureza não é, nesses casos, um qualificativo moral, mas ritual e cultual. As doenças, provocadas pelos demônios, são sinais de que o reino de Deus ainda sofre reação, resistência – não pode implantar-se (Mt 12.28). Os espíritos seriam “impuros” precisamente por impedirem que a santidade de Deus se torne plena e abrangente. Ora, toda a área ou esfera em que o poder de Deus não está ainda plenamente estabelecido é cunhada de “impureza”, porque afastada de sua santidade.
          Segunda: “a impureza provém do contato de demônios com coisas, seres ou lugares impuros, como desertos (Lc 8.29), ruínas (Ap 18.2), cemitérios, sepulcros (Mc 5.2-5)” (WEGNER, 2003, p.88). Terceira: “a impureza seria decorrente do fato de ‘que as doenças por eles causadas faziam com que o endemoninhado contraísse impureza legal e consequentemente fosse afastado da plena participação nos atos litúrgicos ou nas assembleias das sinagogas’” (WEGNER, 2003, p.88).

          Diabo e demônio são termos que designam a mesma coisa ou o mesmo ser? Os evangelhos dizem que não, pois uma característica deles

é a de distinguirem nitidamente entre ação do diabo e ação de demônios. O diabo é, por excelência, o poder que seduz e tenta para o pecado. A ação dos demônios nos evangelhos sinóticos, ao contrário, restringe-se a provocar doenças, seja de ordem física, seja de ordem psíquica (WEGNER, 2003, p.89).

          Podemos entender que os demônios agem através de possessão e que o diabo age através da sedução e tentação. Não encontramos nos Evangelhos a expressão “endiabradas”, mas “endemoninhados”, sim. Werner diz que “por essa razão, Satanás também não é objeto de “expulsão” nos evangelhos. Há, sim, expulsão de demônios, não exorcismos do diabo ou cenas de Satanás atormentando fisicamente possessos” (WEGNER, 2003, p.89).

          Assim, podemos concluir que a compreensão de espíritos maus estava ligada ao desconhecimento das causas. Para tudo aquilo que não se sabia a origem e que não eram detectáveis exteriormente (como a cegueira, lepra, uma mão atrofiada, um fluxo sanguíneo, entre outras) se remetia à ação de demônios. Destarte, epilepsia, surdez, mudez e o caso da demência em Mc 5.1-20 tinham que ser responsabilidade de maus espíritos (WEGNER, 2003, p.96).


1.5       A região dos gerasenos[5]



          A primeira menção que se tem notícia sobre Gerasa

ocorreu durante o período helenístico quando ela foi chamada “Antioquia sobre o rio Chrysorrhoas”. Provavelmente ela foi fundada por Antíoco IV e nomeada a partir dele. Há uma tradição que diz ser ela fundada por Alexandre, o Grande (JOSEFO Guerra dos Judeus, I, IV, 8).  Nicômaco, que nascera em Gerasa, escreveu que Alexandre fundou a cidade, assentando ali os veteranos de seu exército. Chamou-a Gerontes, e o nome semítico, Geresh, seria uma adaptação do nome grego (MESHORER, 1985, p.94). (PORTO, 2007, p. 185).
         
          Ela ficava do outro lado do mar da Galileia e fazia parte da Decápolis, um conjunto de 10 cidades de cultura grega (tanto na arte, quanto na filosofia). Essas cidades eram grandes centros financeiros e econômicos e de grande potencial turístico (PORTO, 2012, p.14). No início da Primeira Revolta dos judeus contra os romanos, de 66 a 70 d.C., época em que provavelmente foi escrito o evangelho de Marcos,

Vespasiano, então comandante do exército do imperador Nero, conquistou a cidade tendo apoio de seus habitantes judeus. Gerasa foi re-fundada como uma colônia romana depois que seus habitantes provaram ser leais aos romanos. A comunidade judaica continuou vivendo em Gerasa, como atestam as ruínas de uma grande sinagoga do período bizantino descoberta na cidade (PORTO, 2007, p. 185).

Temos poucas informações sobre esta cidade de mais de três mil anos de história local. A descoberta de seu sítio arqueológico no norte da Jordânia se deu por um acadêmico alemão no ano de 1908. Ainda hoje se estuda para saber mais sobre ela.



2          ANÁLISE LITERÁRIA


          “Texto sem contexto vira pretexto”, um velho jargão conhecido e citado muitas vezes que oferece razões suficientes para este capítulo. Teremos a abordagem do contexto e a sinopse que permitirá vermos nossa perícope paralela a outros relatos e assim ganharmos segurança para prosseguir na análise do referido texto marcano.

2.1       Mc 5,1-20: perícope


Apresentamos a perícope em grego e, em seguida, a tradução como está na Bíblia de Jerusalém (São Paulo: Paulinas, 1985).

2.1.1 Mc 5,1-20: grego[6]


[5,1] KAI ÊLTHON EIS TO PERAN TÊS THALASSÊS EIS TÊN KHÔRAN TÔN GERASÊNÔN
[5,2] KAI EXELTHONTOS AUTOU EK TOU PLOIOU EUTHUS UPÊNTÊSEN AUTÔ EK TÔN MNÊMEIÔN ANTHRÔPOS EN PNEUMATI AKATHARTÔ
[5,3] OS TÊN KATOIKÊSIN EIKHEN EN TOIS MNÊMASIN KAI OUDE ALUSEI OUKETI OUDEIS EDUNATO AUTON DÊSAI
[5,4] DIA TO AUTON POLLAKIS PEDAIS KAI ALUSESIN DEDESTHAI KAI DIESPASTHAI UP AUTOU TAS ALUSEIS KAI TAS PEDAS SUNTETRIPHTHAI KAI OUDEIS ISKHUEN AUTON DAMASAI
[5,5] KAI DIA PANTOS NUKTOS KAI ÊMERAS EN TOIS MNÊMASIN KAI EN TOIS ORESIN ÊN KRAZÔN KAI KATAKOPTÔN EAUTON LITHOIS
[5,6] KAI IDÔN TON IÊSOUN APO MAKROTHEN EDRAMEN KAI PROSEKUNÊSEN AUTÔ
[5,7] KAI KRAXAS PHÔNÊ MEGALÊ LEGEI TI EMOI KAI SOI IÊSOU UIE TOU THEOU TOU UPSISTOU ORKIZÔ SE TON THEON MÊ ME BASANISÊS
[5,8] ELEGEN GAR AUTÔ EXELTHE TO PNEUMA TO AKATHARTON EK TOU ANTHRÔPOU
[5,9] KAI EPÊRÔTA AUTON TI ONOMA SOI KAI LEGEI AUTÔ LEGIÔN ONOMA MOI OTI POLLOI ESMEN
[5,10] KAI PAREKALEI AUTON POLLA INA MÊ AUTA APOSTEILÊ EXÔ TÊS KHÔRAS
[5,11] ÊN DE EKEI PROS TÔ OREI AGELÊ KHOIRÔN MEGALÊ BOSKOMENÊ
[5,12] KAI PAREKALESAN AUTON LEGONTES PEMPSON ÊMAS EIS TOUS KHOIROUS INA EIS AUTOUS EISELTHÔMEN
[5,13] KAI EPETREPSEN AUTOIS KAI EXELTHONTA TA PNEUMATA TA AKATHARTA EISÊLTHON EIS TOUS KHOIROUS KAI ÔRMÊSEN Ê AGELÊ KATA TOU KRÊMNOU EIS TÊN THALASSAN ÔS DISKHILIOI KAI EPNIGONTO EN TÊ THALASSÊ
[5,14] KAI OI BOSKONTES AUTOUS EPHUGON KAI APÊGGEILAN EIS TÊN POLIN KAI EIS TOUS AGROUS KAI ÊLTHON IDEIN TI ESTIN TO GEGONOS
[5,15] KAI ERKHONTAI PROS TON IÊSOUN KAI THEÔROUSIN TON DAIMONIZOMENON KATHÊMENON IMATISMENON KAI SÔPHRONOUNTA TON ESKHÊKOTA TON LEGIÔNA KAI EPHOBÊTHÊSAN
[5,16] KAI DIÊGÊSANTO AUTOIS OI IDONTES PÔS EGENETO TÔ DAIMONIZOMENÔ KAI PERI TÔN KHOIRÔN
[5,17] KAI ÊRXANTO PARAKALEIN AUTON APELTHEIN APO TÔN ORIÔN AUTÔN
[5,18] KAI EMBAINONTOS AUTOU EIS TO PLOION PAREKALEI AUTON O DAIMONISTHEIS INA MET AUTOU Ê
[5,19] KAI OUK APHÊKEN AUTON ALLA LEGEI AUTÔ UPAGE EIS TON OIKON SOU PROS TOUS SOUS KAI APAGGEILON AUTOIS OSA O KURIOS SOI PEPOIÊKEN KAI ÊLEÊSEN SE
[5,20] KAI APÊLTHEN KAI ÊRXATO KÊRUSSEIN EN TÊ DEKAPOLEI OSA EPOIÊSEN AUTÔ O IÊSOUS KAI PANTES ETHAUMAZON

2.1.2 Mc 5,1-20: português[7]


1 Chegaram do outro lado do mar, à região dos gerasenos. 
2 Logo que Jesus desceu do barco, caminhou  ao seu encontro, vindo dos túmulos, um homem possuído por um espírito impuro:
3 habitava no meio das tumbas e ninguém podia dominá-lo, nem mesmo com correntes.
4 Muitas vezes já o haviam prendido com grilhões e algemas, mas ele arrebentava os grilhões e estraçalhava as correntes, e ninguém conseguia subjugá-lo.
5 E, sem descanso, noite e dia, perambulava pelas tumbas e pelas montanhas, dando gritos e ferindo-se com pedra.
6 Ao ver Jesus, de longe, correu e prostrou-se diante dEle,
7 clamando em alta voz: “Que queres de mim, Jesus, Filho de Deus altíssimo? Conjuro-te por Deus que não me atormentes!”
8 Com efeito, Jesus lhe disse: “Sai deste homem, espírito impuro!”
9 E perguntando-lhe: “Qual é o teu nome?” Respondeu: “Legião é o meu nome, porque, somos muitos”.
10 E rogava-lhe insistentemente que não os mandasse para fora daquela região.
11 Ora, havia ali, pastando na montanha, uma grande manada de porcos.
12 Rogava-lhe, então, dizendo: “Manda-nos para os porcos, para que entremos neles”.
13 Ele o permitiu. E os espíritos impuros saíram, entraram nos porcos e a manada – cerca de dois mil – se arrojou na mar, precipício abaixo, e eles se afogavam no mar.
14 Os que os apascentavam fugiram e contaram o fato na cidade e nos campos. E correram a ver o que havia acontecido.
15 Foram até Jesus e viram o endemoninhado sentado, vestido e em são juízo, aquele mesmo que tivera a Legião. E ficaram com medo.
16 As testemunhas contaram-lhes o que acontecera com o endemoninhado e o que houve com os porcos.
17 Começaram então a rogar-lhe que se afastasse do seu território.
18 Quando entrou no barco, aqueles que fora endemoninhado rogo-lhe que o deixasse focar com Ele.
19 Ele não deixou, e disse-lhe: “Vai para tua casa e para os teus e anuncia-lhes tudo o que fez por ti o Senhor na sua misericórdia”.
20 Então partiu e começou a proclamar na Decápole o quanto Jesus fizera por ele. E todos ficaram espantados.’

2.2 Mc 5,1-20: contexto da perícope[8]


          Jesus chega à terra dos gentios. É “a Boa Notícia atravessando o território da Palestina” (BORTOLINI, 2003, p. 103). A Decápole (terra de dez cidades) está constituída por cidades livres a leste do Jordão. Não pertencem a nenhum dos pequenos reis, são habitadas por gregos e sírios e se encontram sob jurisdição direta da autoridade militar romana (SCHNIEWIND, 1989, p. 83). Esta chegada se deu após a travessia do mar da Galileia que se deu em meio há uma tempestade acalmada por Jesus. Jesus atravessa com os discípulos para a terra dos pagãos. O mar agitado é símbolo das nações pagãs que ameaçam destruir a comunidade cristã. Mas Jesus é o Senhor da história e dos povos. A perícope encerra com outra travessia do mar realizada por Jesus e seus discípulos. As “travessias do mar funcionam como ficção que dramatiza a luta para ‘unir’ os mundos profundamente alienados de judeus e gentios” (MYERS, 1992, p. 235).

          O tema da possessão demoníaca está relacionado com o primeiro milagre de Jesus narrado no capítulo 1, versículos 21 a 28. Podemos relacioná-lo também com “a parábola da semente de mostarda (Reino) abrigando pássaros (pagãos) em sua sombra (4, 30-32), ou seja, permitindo que tenham vida fecunda. Essa semente sofrerá oposição, mas Jesus conta com um aliado estrangeiro mais corajoso que os discípulos que o seguem (5, 20)” (BORTOLINI, 2003, p. 103). Em território pagão Jesus encontra o mal de forma mais violenta e resistente. Este mal tenta dominar Jesus nomeando-o. Mas Jesus é quem lhe arranca o nome[9] “Legião”[10], uma clara alusão aos soldados romanos (MYERS, 1992, p. 238).


2.3       Sinopse (Mt 8,28-34; 9,1 e Lc 8,26-40)


          Nossa sinopse é retirada literalmente da obra Sinopse dos “Evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas e da ‘Fonte Q”’ (KONINGS, p.110-112).



2.3.1 Quadro sinótico



Mt 8,28-34

 

Mc 5, 1-20

Lc 8, 26-39

28 E tendo ele ido para o outro lado, para a região dos gadarenos,
vieram-lhe ao encontro dois endemoninhados,
saindo dos túmulos  muito violentos,
1 E foram para o outro lado do mar, para a região dos gerasenos.
2 E tendo ele saído do barco, logo veio-lhe ao encontro, dos túmulos, um homem com um espírito impuro,  
26 E navegaram para a região dos gerasenos, que é a margem oposta à Galileia,                      27 tendo ele saído para a terra, veio-lhe ao encontro, algum varão da cidade, tendo demônios, e bastante tempo não vestiu roupa, nem permanecia em casa, mas nos túmulos. Is 65,4       
de modo que ninguém conseguia passar por aquele caminho.
3 que tinha a moradia nos túmulos,  nem mesmo com cadeias ninguém conseguia liga-lo
4 porque ele tinha sido ligado muitas vezes com grilhões e cadeias, foram por ele despedaçadas as cadeias e esmagados os grilhões, e ninguém conseguia subjugá-lo.
cf. v. 29bc
Cf. v. 28ª
29 E eis, gritaram (dizendo): Que (há) para nós e ti, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do momento?
5 E, durante toda a noite e dia estava nos túmulos e nos montes gritando e ferindo-se com pedras.
6 E tendo visto Jesus, de longe, correu e prostrou-se diante dele,
7 e gritando com voz forte, diz: Que (há) para mim e ti, Jesus, Filho de Deus altíssimo? Conjuro-te, por Deus, não me atormentes!
28 Tendo visto Jesus, aos gritos caiu diante dele, e  com voz forte disse: Que (há) para mim e ti, Jesus, Filho de Deus Altíssimo? Peço-te, não me atormentes!
30 Havia longe deles uma manada de muitos porcos pastando.
31 Os demônios invocavam-no: Se nos expulsas, envia-nos à manada de porcos.
32 Ele disse-lhes: Parti. Tendo saído, foram-se para os porcos,
e eis, precipitou-se toda a manda no declive o mar,  e morreram no mar.
32 Ele disse-lhes: Parti. Tendo saído, foram-se para os porcos e eis, precipitou-se toda a manda no declive o mar, e morreram no amar.
33 Os que apascentavam aos porcos fugiram e, tendo-se ido à cidade, comunicaram tudo, também o dos endemoninhados.
34 E eis, toda a cidade saiu ao encontro de Jesus,
8 pois dissera-lhe: espírito impuro, sai do homem!
Cf. v. 4
9 E ele perguntava-lhe: Qual o teu nome: E diz-lhe: Legião (é) o meu nome, porque somos muitos.
10 E o invocava-o muito para que não o enviasse fora da região.
11 havia lá junto ao monte uma grande manada de porcos pastando,
12 E invocaram-no dizendo: Manda-nos aos porcos para que entremos neles.
13 E permitiu-lhes. E tendo saído, os espíritos impuros entraram nos porcos, e precipitou-se a manada no declive para o mar e afogaram-se no mar.
14 E os que apascentavam fugiram e comunicaram à cidade e aos campos.
cf. v. 1
E foram ver o acontecido, 15 e vão a Jesus
29 Pois estava mandando o espírito impuro sair do homem. Pois em muitos tempos arrebatara-o, e fora acorrentado com cadeias e guardado com grilhões, e rebentando as cadeias era impelido pelo demônio aos desertos.                                    30 Perguntava-lhe Jesus: Qual o teu nome? Ele disse: Legião! - porque tinha entrado nele muitos demônios -. 31 E invocaram-no para que não os mandasse ir-se ao abismo. 32 Havia lá uma manada de bastante porcos pastando no monte, e invocaram-no para que lhes permitisse entrar neles. 
E permitiu-lhes.                        33 Tendo saído do homem, os demônios entraram nos porcos, e precipitou-se a manada do declive para o lago e afogou-se.
34 E os que apascentavam, tendo visto o acontecido, fugiram e comunicaram à cidade e aos campos.                           35 Saíram ver o acontecido, e foram a Jesus
cf. v. 33b
e vendo-o, invocaram-no para que se mudasse do território deles.
e enxergam o endemoninhado sentado, vestido e lúcido – o que tiver a Legião –
e temeram.
16 E relataram-lhes os que viram como acontecera ao endemoninhado, e a respeito dos porcos.
17 E começaram a invoca-lo a ir-se do território deles.
E encontraram o homem do qual saíram os demônios, sentado, vestido e lúcido, aos pés de Jesus, e temeram.                         36 Os que tinham visto comunicaram-lhes como fora salvo o endemoninhado.           
37 E rogou-lhe toda a multidão da redondeza dos gerasenos que se fosse (embora) deles, porque estavam contidos de grande temor.
Cf. 9,1
18 E tendo ele subido ao barco, invocou-lhe o endemoninhado para que (pudesse) estar com ele.
19 E não o deixou, mas disse-lhe: Vai à tua casa, para os teus e anuncia-lhes quanto o Senhor tem feito e se comiserou de ti.
 20 E foi-se e começou a proclamar na Decápole quanto lhe fizera Jesus, e todos se admiravam.
Ele, porém, tendo subido ao barco, voltou. 38 Suplicou-lhe o homem de quem saíram os demônios para estar com ele. Despediu-o, porém, dizendo: Vai à tua casa e torna conhecido quanto te fez Deus.                    E foi-se proclamando por toda cidade quanto lhe fizera Jesus.

2.4 Diferenças e semelhanças entre os três textos



          A sinopse acima apresentada já destaca as diferenças e semelhanças desta perícope nos evangelhos sinóticos. Entretanto, consideramos importante descrevê-las para melhor entendimento.

          A primeira diferença diz respeito ao nome da região onde ocorre o encontro do endemoninhado com Jesus. Marcos (5,1) e Lucas (8,26) chamam de “região dos gerasenos”. Mateus (8,28) chama de “região dos gadarenos”. Marcos (5,2) e Lucas (8,27) dizem que era apenas um homem endemoninhado. Mateus (8,28) diz que eram dois endemoninhados, descritos simplesmente como “impetuosos”. Também omite a linha memorável de Marcos: “Meu nome é legião, pois somos muitos”, descrita muito similarmente por Lucas. Marcos e Lucas dizem que os gerasenos saíram para ver os endemoninhados curados; e estes pedem para que lhes seja permitido acompanhar Jesus. Mateus não diz isto. É como se se contentasse com registrar essa peça de tradição e passar adiante. O que isso demonstra é que Mateus e Lucas estavam conscientes de (e talvez desaprovassem) algumas peculiaridades do estilo narrativo de Marcos e as considerassem inadequadas a seus diferentes objetivos literários. Possivelmente Mateus procurou economias na narrativa que lhe dessem mais espaço para ditos (KERMODE, 1997, p. 410). Esses textos representam de modo clássico a redução da presença do narrador marcano na transcrição em Mateus e Lucas, embora Lucas a redução seja bem menor que em Mateus.

          Após a introdução com a descrição dos endemoninhados, Mateus e Lucas suprimem os dados fornecidos pelo narrador de Marcos, como o histórico de vida do homem entre os sepulcros, a força sobrenatural diante da qual não conseguiam prendê-lo, sua existência como andarilho, isolado da sociedade, vivendo entre os sepulcros e os montes da região, e sua reação ao ver Jesus (v. 3-6). O narrador mateano retoma Marcos a partir do versículo 7, introduzindo o discurso direto dos homens (v. 29) (Cf. FERREIRA, 2006, p. 192). O narrador lucano vai retomar a partir do versículo 6. Nova supressão acontece em Mateus, que elimina a explicação do pedido do endemoninhado para que não fosse atormentado (Mc v. 7; Lc v. 28b) − Jesus ordenara ao espírito que saísse do homem (Mc v. 8) −, a pergunta de Jesus pelo nome do espírito (Mc v. 9; Lc v. 30) e novo pedido deste para que Jesus não os mandasse para fora do país (Mc v. 10; Lc v. 31). Mateus volta a identificar-se com Marcos e Lucas na descrição da manada de porcos que pastava próximo dali, na solicitação dos demônios para que fossem mandados para os animais, na aquiescência de Jesus, na queda da manada em um despenhadeiro e na fuga dos porqueiros terrificados diante do acontecido (Mc v. 11-14 e Lc v. 32-35). Lucas, entretanto, é sempre mais narrativo, enquanto em Marcos, os personagens falam mais. Outro destaque interessante é que Mateus e Lucas omitem a informação de Marcos a respeito do número de porcos que compunham a manada: “cerca de dois mil” (v. 13)[11]. Excepcionalmente, Mateus amplia o comentário do narrador sobre a reação dos porqueiros (v. 33) (Cf. FERREIRA, 2006, p. 193).

          Os versículos 15 e 16 de Marcos, que informam o encontro do povo com Jesus e com o ex-endemoninhado, agora em perfeito estado, e o testemunho dos que presenciaram o acontecimento, são omitidos em Mateus, mas relatados também em Lucas, sem mencionar os porcos (v. 35-36). Em Mateus, o narrador retoma a narrativa a partir do versículo 17, com o pedido do povo para que Jesus se retirasse de sua terra, encerrando nesse momento o relato (v. 34). Suprime-se, assim, a continuação dos textos marcano e lucano, que registram o pedido do homem para seguir Jesus, a orientação deste para que ele retornasse para casa e anunciasse o que o Senhor havia feito por ele, a conclusão de que aquele homem passou a testemunhar em Decápolis e a consequente admiração de todos (v. 18-20) (Cf. FERREIRA, 2006, p. 193).


3          ANÁLISE CRISTOLÓGICA


          Nos Evangelhos o ponto de partida é sempre Cristo como presença do Reino e do Pai em meio à humanidade. Em qualquer relato, são as palavras e os gestos de Cristo que revelam à comunidade qual deve ser sua postura, pois Jesus, o enviado do Pai é o protótipo de toda pessoa que se põe na dinâmica do Reino. Por isso, mister se faz apresentar uma análise cristológica em nosso trabalho. Eis, pois, a razão deste capítulo e dos itens que seguem.

3.1       Personagens


          Os personagens desta perícope marcana são: Jesus, o endemoninhado/possesso, os demônios/espírito(s) mau(s)-Legião, os homens que guardavam os porcos e os habitantes da região. Os porcos também possuem um simbolismo muito forte, por isso falaremos neles. Já os discípulos são mencionados, mas não possuem atuação na cena, por isso não os mencionaremos. O mesmo faremos referente aos homens que guardavam os porcos e os habitantes da região, pois escaparia ao nosso objetivo.

3.1.2    Jesus


          A possessão e o exorcismo é tema complexo em nossa cultura marcada pela mitologia e pela pregação religiosa amedrontadora. A ação de Jesus em relação ao possesso de Gerasa e dos espíritos em relação aos porcos gera interpretações variadas. Queremos apresentar um olhar menos mitificado e mais contextualizado.

          A ação exorcista de Jesus pode ser compreendida como a forma que ele encontrou para fazer frente à miséria enfrentada pelo povo simples da época. Poderíamos dizer que os relatos iniciais de Marcos (1, 23-26 por exemplo) querem mostrar Jesus “limpando” o terreno para a chegada do Reino, pois “o tempo já chegou” (Mc 1, 15). As libertações são em vista do Reino. É impossível que este aconteça enquanto as “legiões romanas” emporcalham Israel e ferem a vida e dignidade do povo (Cf. REIMER, 2008, p. 157). A atividade “exorcista” de Jesus

quer mostrar que o poder do Reino de Deus está vencendo o poder do demônio que se apodera das pessoas e as oprime, tirando-lhes a capacidade de escutar, de enxergar, de falar e de pensar, impedindo-as de serem sujeitos de sua própria caminhada. “Mas, se é pelo Espírito de Deus que expulso os demônios, então chegou para vós o Reino de Deus” (Mt 12,28). (GASS, 2005, p. 186).

          MYERS (1992, p. 241) nos recorda que “na estratégia narrativa de Marcos, os exorcismos da sinagoga e do geraseno representam desafio inaugural de Jesus aos poderes”. Diz ainda que:

postos em terminologia militar, eles assinalam a ruptura decisiva nas defesas da fortaleza simbólica da Palestina romana. As autoridades, política e ideológica, tanto da instituição escriba quanto da guarnição militar romana – os dois elementos centrais dentro condomínio colonial -, foram repudiadas. O espaço narrativo está livre para o ministério do reino começar em cheio, tanto junto aos judeus como junto aos gentios (MYERS, 1992, p. 241).

          Assim, o “começo da Boa Notícia de Jesus, o Messias, o Filho de Deus” (Mc 1,1) pode alcançar a todos.


3.1.2 O homem possesso e o demônio[12] ou espírito(s) mau(s)-Legião[13]


          Nesta perícope (Mc 5, 1-20) podemos ver o homem possesso como

símbolo da degradação humana. Se de fato fomos feitos a imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1, 26), esse homem é a total desfiguração dessa imagem, tendo de viver clandestinamente, no lugar tido pelos judeus como o mais impuro (cemitério). Aí vive sua privacidade (ninguém iria incomodá-lo neste lugar), nem desprezá-lo por não ter o que vestir (5, 15 mostra o homem curado e “vestido”, sinal de que antes andava nu) (BORTOLINI, 2003, p. 103).

          O endemoninhado “representa ansiedade coletiva em face do imperialismo romano. No exorcismo da sinagoga, ele se identificava com a classe escriba, agora ele se identifica com os exércitos de Cézar” (MYERS, 1992, p. 240). Bortolini (2003, p. 105) chega a dizer mais: “esse possesso representa ainda um povo ideologicamente manipulado”. E nos chama para observarmos:

Note-se o antes e o depois da cura. Antes é porta-voz do dominador, expressando a vontade do espírito impuro; depois expressa exatamente a própria vontade. Jesus liberta também da manipulação ideológica. O possesso é exemplo de um povo de excluídos. O cemitério é a demonstração mais evidente disso, sobretudo se levarmos em conta o que ele representava naquela cultura. Depois de curado, esse homem e torna discípulo de Jesus (está sentado) e anunciador da misericórdia de Deus. Encontrou, portanto, seu lugar social, não é mais um excluído. Jesus tira da exclusão para que cada um encontre seu lugar na sociedade (BORTOLINI, 2003, p. 105).

          Jesus é aquele que cura e liberta por inteiro. O demônio une as coisas ruins e, do amontoado de alienações, gera um povo escravizado e excluído:

 A exclusão tinha também uma faceta religiosa. Embora tudo aconteça em terras pagãs, é oportuno recordar que para os judeus o cemitério é lugar de impureza que afasta de Deus. E Jesus liberta esse homem também disso. Finalmente, Jesus cura também do ponto de vista psíquico. Chama a atenção a situação do possesso, com seus ataques de violência contra os outros e contra si mesmo, querendo destruir e destruir-se. Nesse sentido, os porcos representam as tendências obscuras de uma pessoa (também a tendência à autodestruição). Jesus cura este homem também psicologicamente.  De fato, afirma-se que está aos pés de Jesus, sentado e em perfeito juízo (5, 15) (BORTOLINI, 2003, p. 106).

          O homem possesso é libertado e os espíritos impuros afogados no mar, ou seja, não vivem, nem possuem condições de possuir ninguém mais. Jesus os expulsou.

3.1.3 Os porcos


          Agora, convenhamos que os desfecho final dos espíritos maus chama a atenção de qualquer leitor! E qual o significado dos porcos serem o destino dos espíritos maus? Burnier (1969, p.18) começa explicando que “a existência de uma vara de porcos a pastar naquela região ao oriente do Lago de Tiberíades é compreensível precisamente porque ali era a região da Decápole, habitada em quase totalidade por pagãos não judeus”.  Vale lembrar que “entre os judeus, desde os tempos mosaicos, a criação de porcos estava proibida porque o porco era considerado um animal impuro[14]” (BURNIER, 1969, p.18). Entretanto “naquela região de vilas helenísticas habitadas por pagãos não havia empecilho nenhum a que os porcos fossem criados e comidos” (BURNIER, 1969, p.18). Marcos exagera no número, ou o menciona por causa de um significado específico para sua comunidade.

          Segundo Reimer (2008, p. 146) “o uso da figura do porco permite ao evangelista/redator a construção de sua crítica às diversas forças de ocupação”, tendo em vista que o comércio entre os soldados romanos era alimentado pela criação de porcos. O demônio expulso trai ordinariamente seu furor por alguma destruição espetacular. (BURNIER, 1969, p.30). É interessante perceber que o espírito impuro tem de desmascarar-se na presença de Jesus. E “quando os porcos morrem, os espíritos perdem sua posse no lugar. É a aproximação do Reino de Deus. Jesus liberta não somente uma pessoa, e sim todo um ambiente” (COLAVECCHIO, 2005, p.74-75). Portanto, “Deus estaria vencendo a batalha final contra os demônios, afogando-os no mar. É uma memória do Deus libertador do êxodo!” (REIMER, 2008, p. 166).[15] Os porcos são símbolo do destino do mal onde o Reino está chegando: tende a morrer.

3.2       Palavras de Jesus


          Os primeiros capítulos do Evangelho de Marcos traz a imagem de um Jesus que pouco fala, mas que tem gestos de autoridade. Na perícope que contém os vinte primeiros versículos do quinto capítulo, ele tem três falas, sendo que uma delas (v. 8) é uma recordação do narrador. Nas três está uma sentença de ordem. No v.9 ele faz uma pergunta, mas também em tom ordenante. Jesus manda, não dialoga, não conta parábolas, não profetisa, nem lamenta: ordena.

          O v.8 menciona que Jesus disse: “Espírito mau, saia desse homem!” é um indício da ação exorcista de Jesus. ‘O termo “sai” (exélthe) também é utilizado em Mc 1,25, na sinagoga de Cafarnaum, e em Mc 9,25, na cura/exorcismo do filho com espírito mudo”, nos lembra Reimer (2008, p. 130). Jesus define o espírito como mau, e ordena sua saída: “saia!”. Reconhece a humanidade do possesso e demonstra que sua ação é em favor dele – “desse homem”.

          O v.9 traz a pergunta-ordem de Jesus: “Qual é o seu nome?”. Na Bíblia o nome implica autoridade, posse. Jesus pede para que ele se revele, pois o nome dele faz com que as testemunhas o identifiquem, ou seja, não confundam a proposta de Cristo com a do mal.

          Por fim, o v. 19 traz a terceira fala de Jesus: “Vá para casa, para junto dos seus, e anuncie para eles tudo o que o Senhor, em sua misericórdia, fez por você”. É a incumbência de uma missão, “Jesus o envia, empregando termos missionários (apángueilon, keryssein)” (REIMER, 2008, p. 131), pois o liberto precisa propagar a libertação. Fala que quem o libertou foi o “Senhor” e que o fez “em sua misericórdia”. Se a legião era carrasca, o prendia no cemitério e o levava a se ferir com pedras nos montes e túmulos, Jesus o devolve para a sua casa, para os seus num gesto misericordioso. Inverte-se a lógica. O verdadeiro “Senhor” é misericordioso, diferente do imperador romano e suas tropas.

3.3       Gestos de Jesus em relação ao homem possuído por espíritos maus


          Priorizando os gestos de Cristo que anuncia o Reino, Marcos descreve três atitudes de Jesus. A primeira já comentamos acima. Trata-se do ato de perguntar em tom de ordem (v.8). Jesus faz o demônio confessar sua identidade, o desmascara. Mais tarde João escreverá “conhecereis a verdade e ela vos libertará” (Jo 8,32). Podemos supor que é mais ou menos esta a intenção de Marcos ao descrever esta ordem-pergunta de Jesus, uma atitude inteligente e direta.

          Os outros dois gestos de Jesus são descritos nos versículos 13 e 19. Ambos trazem o verbo deixar, porém um de modo positivo e o outro de modo negativo. No v.13 “Jesus deixou” que os espíritos fossem nos porcos. O demônio quer permanecer dominando a região, por isso pedem para ir aos porcos, mas estes vão se afogar, de forma que a permissão de Jesus na verdade foi uma forma pedagógica de mostrar que o mal não poderia ficar num lugar onde a Boa Nova do Reino estava se instaurando (COLAVECCHIO, 2005, p.74-75). No v.19 Jesus “não deixa” que o homem liberto dos demônios o siga na barca. A missão deste homem é na Decápole e ali ele vai anunciar o ato misericordioso do Senhor para com ele e para com todos. É um gesto de Jesus que deixa missionários do outro lado do mar. Quem precisará aprender mais serão os discípulos que estão na barca. Fica claro, também, que toda atitude de Cristo tem em vista o bem de quem quer seja e, principalmente, a eminencia do Reino do Pai.


4 HERMENÊUTICA




Para quem está inserido num estudo teológico que visa a transformação da sociedade a partir da fé, não interessa-lhe fazer apenas arqueologia teológica, ou seja, colher dados, informações e opiniões e ficar nelas mesmas. Importa mesmo, é ter uma seta ou uma luz que possibilite entender o hoje e o agora numa dimensão protagonista para o estudante e sua comunidade. Isto é possível se houver uma hermenêutica. Seguimos, então, com este propósito nos itens abaixo.

4.1       O que se pode entender por espíritos maus em Mc 5,1-21?


          Dentro da lógica do desenvolvimento de nosso trabalho poderia se concluir, muito obviamente, que espíritos maus, ao se identificarem com “legião”, confessavam ser a manifestação opressora das tropas militares romanas. Entretanto, a expressão “espíritos impuros” pode denotar mais. Por isso discorremos sobre, especificamente este termo.

          Reimer (2008, p. 150) se vale de Mateus e Camacho (1991, p.149) para dizer que espíritos impuros seriam “forças ou princípios ativos que procedem do exterior do homem; se este aceita sua influência, eles agem em seu interior”. Diz ainda, que “são forças ideológicas contrárias ao plano de Deus manifestado em Jesus Cristo”. Kenner Terra (2011, p. 9) menciona que espírito impuro é uma espécie de identificação da condição do homem narrado em Mc 5, 1-20, “a ponto de estar em contraste com Espírito Santo (Mc 1,8 x 1, 23). Por isso, ter espíritos imundos para Marcos, significava estar possuído por demônios, como percebemos na ideia do verbo daimonízomai” (TERRA, 2011, p.9).

          A novidade vem com Collins: 

A referência para “espíritos impuros” é uma judaica formulação que pode ser lida na história da queda dos anjos. Em 1 Enoque Deus manda Enoque repreender os anjos caídos, os Vigilantes, e diz para eles: “Porque vocês desceram do alto, santo e eterno céu, e uniram-se com mulheres e tornaram-se impuros com as filhas dos homens...? E vocês eram espirituais, santos, e viviam na vida eterna, mas tornaram-se impuros com as mulheres”. Similarmente, o livro de Jubileus apresenta que uma das três causas do dilúvio foi a fornicação: os Vigilantes tiveram ilícita relação – fora do ambiente de sua autoridade – com as mulheres. Quando eles, com as quais escolheram, cometeram o primeiro (ato) de impureza. Então, Jubileu pode referir-se em geral a impuros demônios. (COLLINS, apud TERRA, 2011, p.10).

          Antes havíamos abordado outra visão. Entretanto, o contato com o escrito de Kenner Terra (2011) nos possibilitou pensar por esta vida. Este autor afirma que “a questão da impureza dos demônios nos sinóticos está ligada à impureza presente no desenvolvimento do mito dos anjos caídos da tradição enoquita” e que “os demônios carregam o caráter de impuros, pois sua origem e práticas estão ligadas a impureza das tradições enoquitas”.[16],[17] Essa é mais uma interpretação que merece ser levada a sério. Espírito impuro é, com certeza, o espírito contrário ao Espírito Santo que procede do Pai e do Filho e anima a vida da Igreja. Tendo ou não relação com mitos antigos, quer significar todo poder e toda ação que impede que o reino de Deus se instaure no mundo em a favor dos pequenos e mais sofridos, para a salvação de todos.

4.2       Qual a possível mensagem do fato narrado na perícope?


         Marcos tinha por principal objetivo responder quem é Jesus. Ele é o Filho de Deus. Assim, os exorcismos operados por ele “seriam manifestações e concretizações da chegada de Deus, que com seu poder vem para governar seu povo” (REIMER, 2008, p, 154). Não é atoa que há duas cenas de exorcismo nos primeiros capítulos do evangelho, pois,

na estratégia narrativa de Marcos, os exorcismos da sinagoga e do geraseno representam desafio inaugural de Jesus aos poderes. Postos em terminologia militar, eles assinalam a ruptura decisiva nas defesas da fortaleza simbólica da Palestina romana. As autoridades, política e ideológica, tanto da instituição escriba quanto da guarnição militar romana – os dois elementos centrais dentro condomínio colonial -, foram repudiadas. O espaço narrativo está livre para o ministério do reino começar em cheio, tanto junto aos judeus como junto aos gentios. (MYERS, 1992, p. 241).

          A mensagem que a comunidade marcana queria transmitir estava fundada em Jesus. Para Vaage (1998, p.15), “o ex-endemoninhado torna-se o primeiro missionário no evangelho de Marcos, explicitamente autorizado por Jesus, e o único cujo trabalho terá trajetória”. De fato, só anuncia a presença do Filho de Deus que cura e liberta quando já não se está sendo manipulado pela impureza do espírito mal. A missionariedade do liberto é uma mensagem explícita de que quem é atingido pelo Reino que Cristo veio instaurar não pode ficar preso à libertação particular, mas ser um propagador em sua comunidade.

          O texto ainda relembra a travessia do Mar Vermelho quando fala dos porcos ao mar. Assim mostra que Jesus é o novo Moisés que veio libertar a humanidade. Os porcos são sinais dos militares romanos e a “legião” uma clara inferência a este nome (COLAVECCHIO, 1984, p.83).  Cristo deseja exorcizar judeus e pagãos deste Império.

          Outro aspecto de suma importância na mensagem que Marcos ou sua comunidade queria transmitir nos é indicada por MARSHALL (2007, p. 78-79):

Parte do propósito de Marcos seria deixar claro que Jesus era o Messias que devia sofrer e não uma figura triunfante e gloriosa, e que o discipulado, portanto consistiria em estar pronto para carregar a cruz, como Jesus carregou. Afirma-se que Marcos é responsável por contrabalançar uma “teologia da glória” com uma teologia da cruz.

             Assim, Jesus que tem poder sobre os espíritos maus mostra que a comunidade, mesmo em meio à pobreza e opressão, tem poder para derrotar o mal, pois o Messias está com eles.

4.3       Como apresentar esta narrativa às comunidades de nosso tempo?


          Não poucas vezes, falar do mal é cair na obviedade. Ninguém duvida da existência dele, pois todo mundo já experimentou em sua vida coisas contrárias ao bem. É mais fácil duvidar do bem do que do mal, pois a intenção de uma boa ação não deixa de trazer uma pitada de dúvida, por exemplo. O mal é uma experiência antropológica. Estar privado do bem parece ser só mais um slide da vida. Nesta projeção se vê muita coisa. E a vitória, a superação, é aquela imagem que sucede a narração de uma experiência indesejável.

          Se ontem e hoje o mal é tão próximo do ser humano, a definição dele não o é. Qual a origem do mal? Qual a função do mal? Ele é ontológico? É necessário? Sua existência depende de nós? Nestas perguntas se inserem as narrativas bíblicas que precisam de uma interpretação no seio das comunidades. Jesus aparece como aquele que destrói e expulsa o mal. Tem uma atividade exorcista que afasta o mal de personagens individuais e coletivas. “O texto de Mc 5, 1-20 foi um instrumento de intervenção da comunidade marcana num contexto de crises e conflitos, propondo uma alternativa s forças demoníacas e a estruturação social da pax romana” (REIMER, 2008, p. 167), por isso ele tem nome e características próprias. Em nossos dias ele permanece presente. O Mal

opera também na sociedade, através das situações e das estruturas que tornam normal a exploração do trabalho, a privação da terra, o uso do poder para enriquecer uma minoria, a opressão para prevenir mudanças, a corrupção, os gastos enormes em armamentos, a propagação da pornografia, o aborto, a destruição da família. Tudo isso esmaga a saúde, os valores, a vida das pessoas. O Mal desfigura a imagem de Deus nos homens de hoje, como o fez com este possesso no Evangelho (COLAVECCHIO,1984, p.84).

          Atualizar a perícope do possesso geraseno significa colocar-se na mesma dinâmica que este personagem assumiu: anunciar o que o Senhor faz pelo seu povo. Reimer (2008, p. 165) nos lembra que
o discipulado das obras de misericórdia  empreendido pelo que fora endemoninhado (Mc 5,18-20) coloca uma tarefa aos seguidores(as) de Jesus, reunidos na Comunidade-Igreja: estar próximos dos excluídos ou possuídos pelo sistema opressor demoníaco. E, nesta proximidade, é necessário caminhar com o povo, promovendo junto com ele a libertação, principalmente nos espaços onde a vida está mais negada e massacrada pelas diversas formas de possessão. Trata-se de uma Igreja que vá além dos rituais religiosos de exorcismos, com o uso de água benta e esconjuros, e das interpretações seculares, baseada em psicologismos que não comprometem nem libertam. (REIMER, 2008, p. 165).

          Ao passo que proliferam-se cultos e igrejas com práticas exorcistas sem criteriosos paradigmas, mas valendo-se das narrações bíblicas descontextualizadas, é preciso mostrar a face inteira deste luzeiro que é o Evangelho. Se há a possessão de espíritos maus ou se são apenas alegoria usadas pelos autores sagrados, em especial por Marcos (5, 1-20), cabe ao intérpretes não fazer disso um meio de exploração, de fechamento ou de individualismo. É certo que “a leitura e a compreensão da possessão demoníaca em nossos dias devem ultrapassar o âmbito meramente religioso e a esfera particular do indivíduo” (REIMER, 2008, p. 165), pois como percebemos nos antecedentes itens, toda menção marcana à ação jesuânica era para mostrar o poder do Filho de Deus e a instauração do Reino, razão pela qual Jesus se encarnou e realizou todas suas obras culminando em sua paixão e ressurreição.

CONCLUSÃO


          O término de qualquer coisa que nos envolveu apresenta uma nostalgia, uma alegria e uma decepção. Nostalgia pelo fato de precisar encerrar um assunto que não deixou tudo o que podia deixar naquele que o perscrutava; alegria por simplesmente poder dizer algo com segurança e seriedade a respeito do que se propôs a entender; e, decepção (num sentido pedagógico – que proporciona uma redimencionalização) por se deparar com o duro desafio de continuar na busca sem avistar um ponto de chegada, nem de descanso. Confessamos que é com tais sentimentos que chegamos ao fechamento desta árdua pesquisa.

          No presente trabalho buscamos entender a cena da expulsão dos espíritos impuros do endemoninhado geraseno no evangelho de Marcos, capítulo 5, versículos de 1 a 20 – “qual é o teu nome?”. Enfrentando as dificuldades de interpretação, trilhamos o caminho da pesquisa bíblica ajudados por renomados autores. A maioria nos ajudou a entender que cada gesto, palavra e atitudes contidas na perícope remetem ao Reino de Deus e são parábolas de uma ação concreta de Jesus, o Messias. A comunidade marcana reuniu os sinais de Jesus e os uniu com a simbologia da região gerasena, dos espíritos impuros, e da realidade sofrida que Roma havia imposta, a fim de mostrar que com Jesus uma nova realidade havia sido criada e que era possível construir uma história de libertação como aconteceu outrora com o povo escravo no deserto. Também pretendia deixar claro que o ministério de Jesus era para todos os povos, e que a libertação do mal nos faz mensageiros da boa notícia. Essa boa notícia do Filho de Deus tocou a vida da comunidade de Marcos e pretendia tocar a todos quanto recebessem este mesmo anúncio.

          O tema do exorcismo que esta perícope traz tem muitas e diversas compreensões. As que descrevemos e argumentamos não é a vigente em nossos dias, nem nos convence por inteiro. Entretanto, não há bases cientificas para afirmar o contrário. Por isso, fieis à academia, não contradizemos o que a literatura sobre este assunto nos apresentou. Entretanto, também não descartamos as afirmações do Catecismo da Igreja (Parágrafos 391-392, 398, 409, 414, 421, 447, 539, 550, 566, 635, 1086, 1501, 1636, 1708, 2850-2854) nem do Ritual de Exorcismos e outras súplicas da Igreja Católica Romana.

          “Qual é o teu nome?” Que o mal, ontológico ou não, jamais encontre espaço na vida dos cristãos! A exemplo do geraseno, possamos ser testemunhas do Evangelho que liberta e conduz o povo ao reino de Deus. Cabe, pois, aos discípulos de hoje, identificar a presença maligna e exorcizá-lo para o bem das pessoas e do mundo inteiro. Marcos mostrou Jesus como alguém atuante e não apático ao sofrimento que espíritos maus impõem. No contexto secular ou/e religioso, o teólogo que estuda e reza Mc 5, 1-21 sente-se inquieto e persuadido a cumprir sua missão na missão de Cristo. Quem é Jesus? É aquele que também expulsa os espíritos impuros.

REFERÊNCIAS 



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BÍBLIA. Bíblia Sagrada Edição Pastoral. São Paulo: Paulus, 1991.
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CATECISMO DA IGREJA CATÓLICA. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1998.          
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evangelho de São Marcos. São Paulo: Loyola, 1984.
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[1] Cf. http://www.veritatis.com.br/patristica/extratos/1409-fragmentos-das-obras-de-papias-de-hierapolis
[2] http://tede.biblioteca.ucg.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=487
[3] ‘William Wrede (1901) foi quem colocou, de modo sistemático, a questão do “segredo messiânico”, que Marcos teria inventado para explicar o abismo entre o culto que a Igreja primitiva prestava ao “Cristo pascal” e o Jesus histórico que nunca teve consciência de ser o Messias. Porém a teoria de Wrede foi rechaçada por vários argumentos, entre os quais as confissões históricas do messianismo de Jesus feitas: por Pedro (8,29), pela multidão na entrada de Jerusalém (11,1-11) e pelo próprio Jesus perante o Sinédrio (14,62). O segredo messiânico (“não contar nada a ninguém” – 9,9) só é acessível a quem crê e segue a Jesus.’ (QUATRIN;
HOHEMBERGER, 2008, p.14).
[4] Segundo MARQUES, Maria Antônia. No caminho de Jesus. Uma leitura do evangelho de Marcos. Vida Pastoral, São Paulo, n. 286, p. 7-8, 2012.
[5] Mt traz esta cidade com o nome de Gadarenos e Lc como Gergesênios. As “edições críticas modernas são geralmente unânimes na opção de “Gersasenios”, para o texto de Marcos, porque é mais bem fundamentado na tradição manuscrita, em também porque as duas outras variantes além de textualmente fracas, têm toda a característica da influência de Mt (= Gadarenos) e de Lc (Gergesênios)”. (BURNIER, 1969, p.13).
[6] Cf. DVBITANDO, AD VERITATEM PARVENIMVS... ALIQVANDO!: Duvidando, chegamos à verdade... às vezes! Disponível em: <http://dubitando.no.sapo.pt/Mc_c.htm>  Acesso em: 25 abr. 2013.
[7] Cf. BÍBLIA. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2003.
[8] “Esta história foi provavelmente inspirada por Isaías 65:4, onde existe novamente o paralelo entre os túmulos do cemitério e os porcos (que se assenta nos sepulcros e passa a noite em lugares secretos, que come carne de porco, e em cujos vasos acham-se caldo de coisas abomináveis)” (BROWN, 1968, p. 32).
[9] “O nome que o diabo tinha dado a Jesus é, para os leitores cristãos, uma confissão de sua divindade: “Jesus, Filho do Deus Altíssimo”. Assim, sem o saber, o espírito imundo está respondendo à pergunta feita pelos discípulos depois de verem Cristo acalmar a tempestade. Quanto aos Doze, eles não sabem quem é Cristo; mas neste momento eles vão testemunhar mais uma manifestação do poder de Deus que atua através dele.” (COLAVECCHIO,1984, p.83).
[10] ‘“Legião” era também um agrupamento de soldados do exército romano – no caso, uns dois mil. Através deste número, se destaca de novo a força do mal que está presente no homem’ (COLAVECCHIO, 1984, p.83). “As legiões representavam a maior divisão dos exércitos romanos, composta de uns 6.000 homens de infantaria, 120 da cavalaria, além de tropas auxiliares e encarregados de serviços gerais (MACKENZIE, 1983, p. 536).” (REIMER, 2008, p. 143).
[11] No quadro sinótico de KONINGS que apresentamos esta informação também não aparece. Entretanto, na tradução da Bíblia de Jerusalém (Paulus, 2003) esta informação está explícita.
[12] “Segundo a demonologia da época, são espíritos contrários a Deus com poder de apoderar-se das pessoas, tornando-as incapazes de entrar em comunhão com o espírito de Deus e produzindo malefícios em seus corpos e sua vida. É uma crença pré-científica que atribui aos demônios todos os males sem explicação. Para cada mal, imaginava-se um tipo de demônio. Conforme a crença, os demônios não só podem provocar doenças físicas e mentais às pessoas, mas também podem movê-las a se oporem ao projeto de Deus. Ex: Pedro e Judas personificam Satanás (Mt 16,23; Lc 22,3).” (GASS, 2005, p. 185-186).
[13] A perícope, hora presenta o homem como endemoninhado (supõe possuído pelo demônio), hora fala em espírito mau no singular, mas também usa no plural. Legião é o nome que Jesus arranca dos espíritos maus. O narrador chama por todos os nomes citados; Jesus de espírito mau e, este, se autodenomina como Legião.
[14] “No Judaísmo os porcos eram classificados como animais impuros (Lv 11, 7; Dt14,8)” (REIMER, 2008, p.144).
[15] ‘O afogamento da “legião” de porcos no mar (Mc 5, 13) evoca Ex 14, 15ss, em que é narrada a morte dos cavalos e do exército do faraó do Egito no mar dos juncos (RABUSKE, 2001, p. 262). Nesta direção podemos acrescentar também Ne 2,3-5 e sua preocupação com os sepulcros/memorial de seus pais em Judá (mneméion) e com a cidade desolada e as portas comidas pelo fogo, que poderia bem ser a descrição da tomada da cidade de Gerasa por parte das forças militares romanas’ (REIMER, 2008, p.133).
[16] “O Mito dos Vigilantes, apesar de desconhecido do público acadêmico brasileiro em geral, constitui uma das narrativas fundantes do ocidente. Isso é dito sem nenhum exagero, uma vez que esta narrativa influencia muito a forma como o judaísmo e o cristianismo compreendem a origem do mal e do demoníaco no mundo, a fundação da cultura e o papel que nela tem os seres divinos e os humanos, especialmente representados pelas mulheres” (NOGUEIRA, 2006, p. 145).
[17] O Mito dos Vigilantes está preservado no Livro dos Vigilantes, que pertence a uma obra maior conhecida como I Enoque. Este texto, por sua vez, somente foi preservado totalmente na versão etíope (em Ge’ez), e tem aproximadamente 49 manuscritos. ‘O texto é a junção de duas tradições, que no segundo século já pertenciam a uma única obra. De acordo com o relato dos capítulos 6-11, um grupo de seres angelicais nomeados como Os Vigilantes se atraíram pela beleza das filhas dos homens, e conspiraram entre si sob a liderança de Shemihazah, com o propósito de possuírem as belas mulheres, filhas dos homens. “Quando os filhos dos homens se multiplicaram, naqueles dias, nasceram-lhes filhas bonitas e graciosas. E os vigilantes, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: Venham, escolhamos para serem nossas esposas as filhas dos homens, e tenhamos filhos! Disse-lhes então o seu chefe Semiaza: Eu receio que vós não queirais realizar isso, deixando-me no dever de pagar sozinho o castigo de um grande pecado. Eles responderam-lhe e disseram, Nós todos estamos dispostos a fazer um juramento, comprometendo-nos a uma maldição comum, mas não abrir mão do plano, e assim executá-lo. Então eles juraram conjuntamente, obrigando-se a maldições que a todos atingiram. Eram ao todo duzentos os que, nos dias de Jared, haviam descido sobre o cume do monte Hermon. Chamaram-no Hermon porque sobre ele juraram e se comprometeram a maldições comuns (I Enoque 6,1-5). Com o contato com os seres humanos, os vigilantes ensinaram a arte da metalurgia e da confecção de armas. Às mulheres ensinaram a arte de ornamentar-se (maquiagem, por exemplo) e as artes da adivinhação, magia, encantamentos, astrologia e cultivo de raízes (8,1-3). Ao terem relações sexuais com as mulheres geraram gigantes, seres híbridos que comeram todo o alimento produzido pela terra e depois os próprios seres humanos. Com o derramamento de sangue, a humanidade clamou a Deus. Ao ver o caos instaurado sobre a terra, os anjos Miguel, Sariel, Rafael e Gabriel, que estavam no céu, intercederam ao Altíssimo em favor da humanidade (cap. 9). Em resposta à solicitação dos anjos, Deus envia o anjo Sariel para alertar Noé do iminente julgamento que virá sobre o mundo. Na seqüência, Deus envia Rafael para prender Azazel nas profundezas do deserto, que lá deveria permanecer até o julgamento final. Então Deus envia Gabriel, a fim de destruir, sem misericórdia, os gigantes (10,4-12). E a Miguel Deus ordenara que prendesse Shemihazah e seus comparsas angelicais e os encarcerassem por sete gerações nos vales profundos da terra, até o dia do julgamento, o dia do juízo final, quando finalmente serão lançados no fogo eterno. E então, florescerá a justiça e a paz entre os justos da terra (10,16-11,2). (Cf. TERRA, 2011, p. 4-6).

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