Cumplicidade


Depois de fazer tantas coisas e viver mistas emoções à luz do dia, fui abraçado paulatinamente pela noite. Tudo é escuro. O belo negro suplanta a luz. As certezas que carregava durante o dia titubeam às trevas da noite. E o homem antigo resolve persuadir o novo. A rotação começa se dar em segundos, se alternar em minutos, dentro de mim. O que é isto? A aventura desventura de existir. De fronte à vida, um segredo fica.

Parece-me que a noite e o dia são cúmplices. E que os rios e o mar também. Ah! Dor e gozo não fogem deste paradoxo. Espera aí: o universo é constituido disso, de cumplicidade? A vida se tece de cumplicidade? Se for assim, o segredo que fica é a cumplicidade. Agora estou entendendo, ainda que em meio às espessas nuvens de minha ignorância: as coisas que dão certo estebelecem cumplicidade. E só por isso deram certo. Não será esta uma conclusão demasiado rápida? Perscurtemos os caminho desta alameda noturna.

Cúmplice significa aquele que é conivente na ação do outro, que comunga, que apoia, que faz junto, que vive a paixão do ato realizado paralelo ao que o torna fato; que tem comum pensamento, comum atitude, comum presença. Não estamos considerando a definição do direito penal para esta palavra. Estamos intuindo com o coração a virtuosa direção para a qual ela aponta. Cumplicidade é um modo de dois ou mais corações conhecerem a verdade na incógnita maneira que ela se mostra.

Amigos são cúmplices: na brincadeira, no jogo, e quando a coisa fica séria; também quando arriscam, quando se equivocam, quando silenciam e quando bagunçam. Amigos são cúmplices porque não há amizade que perdure se não houver um jeito criativo de reinventá-la a cada ocasião.

Apaixonados são cúmplices. O crescimento do amor não ocorre se não na cumplicidade. É a nudez do sentimento, o húmus do sonho, as pistas do enigma. Cumplicidade é ser o outro sem ser no lugar dele. É descobrir-se sendo aquele, sem ele ser você e, sem você, de fato, ser ele. Não há mais distância, divergências, impedimento: ambos estão no útero da ocasião e na expectativa do parto feliz. O amor faz a gente deixar o que gosta para satisfazer o gosto do outro e fazer  com que o outro goste da gente:  e isto se torna o gosto da vida.

Deus e o homem são cúmplices. E se não há esta cumplicidade é porque a parte finita desconectou seu coração da Infinita Paixão. A felicidade depende desta relação intima e sincronizada com o Senhor. Participar na criação como um ato que “está sendo” e ser co-autor com Deus e, por isso, cúmplice, é uma das grandes evidências desta realidade. Se você inventa algo, se faz o bem, se transforma a natureza de forma respeitosa e cautelosa, torna-te cúmplice da criação divina. Somos cúmplices de Deus quando amamos. Amar é fazê-lo viver encarnadamente no agora que agora temos. Pode haver maior cumplicidade? Ah, humanidade. Volta a ter aquela sintonia com o coração da Infinita Paixão. Descobrirás que Ele ri contigo das coisas que você imaginava rir sozinho; que Ele sonha aquelas loucuras que você achava bobagem; que Ele derrama lágrimas no travesseiro contigo. Que Ele abre as cortinas da janela para você enxergar a luz do dia.

.           A bela negritude da noite quis me dar um susto, mas me desvelou um segredo. E a aventura desventura da vida voltou a ser só aventura. O homem novo inverteu o jogo e acabou por convencer o homem velho. A rotação aquietou, e as certezas se adormeceram de mãos dadas com as dúvidas, feito irmãs gêmeas no berço da esperança. Descobri a cumplicidade da vida, das coisas que ela me deu, das pessoas que me são caras, e da Infinita Paixão – nome que acabo de cunhar para Deus.

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