A educação que liberta no livro VII da República de Platão: análise a partir da Alegoria da Caverna


A educação é um tema relevante em diversos lugares do mundo. Sua importância se dá pela função que tem: a formação do homem. Modelos e teorias educacionais se apresentaram nas sociedades em busca de formar o homem ideal, que implica na transmissão e assimilação dos bens culturais da coletividade. Ora este modelo se caracteriza pelo religioso, ora pelo racional, pelo político, pelo humanístico, pela moral, pelo econômico, pela visão coletiva ou individual da pessoa humana. Verdade é que este assunto nunca se esgota, principalmente no âmbito filosófico, uma vez que ele acompanha os movimentos da humanidade. Assim, jamais será demasiado falar da educação. Este tema remete ao futuro, a solidez da sociedade, ao respeito à cultura, à moral e os costumes do povo, ao cuidado do ser humano e, mais recentemente junto a esse tema, se inseriu com ênfase, o cuidado com o planeta e todos os entes que o compõem.

Os diversos acontecimentos possibilitaram que a humanidade avançasse muito e conhecesse coisas que em tempos idos jamais se sonhara. Até os contemporâneos ao presente progresso, se surpreendem com a velocidade com que se dão as invenções e inovações tecnológicas devido ao crescente aprimoramento do conhecimento e acesso a recursos, às vezes, bastante restritos.

O que surpreende é o fato de que, mesmo havendo um considerável progresso técnico-científico, por outro lado, contudo, não há o correspondente progresso humano, por conta da falta de “investimento” em educação. Além do que, os benefícios do progresso material, não favorecem e nem visa a todos.

Estas são as causas primárias desta realidade e que motiva a preocupação e o interesse de educadores, líderes de diversas áreas sociais e governantes, desejosos de verem não uma parte da sociedade, porém toda ela, se desenvolvendo e vivendo dignamente. Para isto, é indispensável, à boa educação, que se invista em processos educativos que iluminem a realidade e libertem a sociedade das amarras presentes exercidas pela dominação do poder técnico-científico, que se apóia num saber unilateral e reducionista acerca do homem e do seu sentido de vida. A educação forma os cidadãos para a autonomia e para a ativa interação social, por isso ela é necessária para que a sociedade possa proporcionar felicidade aos seus.[1]

Esta não é a primeira vez na história que o tema educação é apresentado como instrumento para a solidificação da sociedade. Na República, uma de suas clássicas obras, Platão discorre amplamente sobre o assunto. O problema central de que parte é o da justiça. E deste tema, passa para o da estrutura de um estado bem construído que será então a República - o estado ideal, o reino do espírito da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo.”[2] Pode-se constatar que a proposta desta obra é a constituição de um estado ideal e a questão básica e indispensável para se atingir este objetivo, é a educação, que no livro sétimo, com a Alegoria da Caverna, é proposta como libertação do homem em relação as amarras da sociedade iludida com a aparência das coisas. Há alguns fatores que mantém a sociedade privada da luz do bem para si por estar presa a amarras estruturais que impossibilitam o conhecimento das coisas como realmente são e da forma como se apresentam. A alegoria de Platão tem como proposta a libertação como caminho ascendente com base na educação, não usada como instrumento de dominação, mas como meio de se chegar à verdadeira ideia de tudo o que existe. Por isso tornará mais clara nossa reflexão, pois por séculos ela vem instruindo educadores e filósofos em variados locais, culturas e situações.

Educar é construir e reconstruir a sociedade. Assim pensa a filosofia. Enquanto a educação não estiver cumprindo seu papel formador de uma sociedade livre, crítica, consciente e autônoma, ou então enquanto não lhe forem oferecida às condições para isso, far-se-á necessário problematizá-la e apontar direções. No entanto, para falar com autoridade é preciso recorrer a ideias que deram certo e que de certa forma sirvam como pistas para a contemporaneidade. Platão no Mito da Caverna propôs a missão da educação de forma compreensível e simples: libertar. Eis o papel da educação, do qual o filósofo encarregou-se em suas obras e assumiu em sua vida pessoal como ideal a ser perseguido.           

Nosso filósofo, com suas ideias tão ricas e compreensíveis, apresentadas no Livro VII da República, em especial no Mito da Caverna, oferece luzes para compreendermos a situação atual da educação no Brasil e no mundo. A caverna é muito bem adequada ao que vemos hoje: gente informada, mas mal formada, que não pensa, não age nem reage criticamente. A razão para isto? Não foi educada, nem estimulada a pensar livremente. Gente que vê uma sombra ali, outra mais a frente, numa velocidade impressionante, mas que não pergunta pela razão de tais se apresentarem. E o pior: encontramos em nossas escolas alunos que não têm gosto pelo saber, pela aprendizagem, pela reflexão. Isso angustia o educador filósofo, amante da sabedoria e do bem, pois sabe que estacionado o homem não consegue ser feliz. Sem aprender a ser autônomo pela própria reflexão, o ser humano vive iludido, propício à manipulação dos poderosos que os conservam assim em benefício próprio. Sim, vemos ainda existir uma sociedade aprisionada: no consumismo, nas informações prontas, no hedonismo, no egoísmo, na violência, na corrupção, no pragmatismo, nas estruturas políticas e culturais, na ignorância que se governa a partir de imagens, que se formam na aparência conformada, acomodada e desesperançada dos ideais que humanizam o ser humano, daqueles que respeitam sua integridade e promovem sua ascensão.

A liberdade tão essencial ao homem, vem sendo confundida com libertinagem e por isso sempre mais distante. Da educação e da liberdade se tem uma imagem distorcida e não a consciência do que ambas sejam. Junto a isso temos a concepção de ser humano sendo sempre mais instrumentalizada, por isso denegrida e desvalorizada. Para os “sofistas” da atualidade, importa que o homem acostume-se a essa sua imagem e continue preso à cavernosidade de sua ignorância. Mesmo que seja difícil de medir o grau em que isso se dá no Brasil, ou do quanto já se avançou, não nos parece inoportuno provocar tal reflexão, uma vez que a verdade pode se mostrar mais clara à medida que dialogamos com questões capazes de nos por no movimento rumo à luz, não permitindo-nos estar satisfeitos simplesmente por ver as coisas na luz, mas desejoso de ver a própria luz.

Estas constatações não freiam o educador filósofo como narrado por Platão no Livro VII da República. A verdade é sempre parceira na transformação. O mundo espera quem o transforme e o homem está imbuído de ser instrumento para ele mesmo do elemento libertador. A educação abre um leque de possibilidades para essa libertação que só à luz da verdade se pode construir. Para isso trouxemos presente essa situação: para instigar a ação educativa filosófica que busca na libertação, um caminho de efetivação do sonho da sociedade feliz.

O educador libertador constata que há pessoas no fundo da caverna. Imbuído do espírito libertador ele faz o caminho de descensão e ascensão constantemente, pois quer que todos se libertem e sejam libertados de sua ilusão e da opressão que esse estado de vida gera. Não adiantará plebiscitos, discussões, informações, problematizações e até mesmo eleições, se o povo não tem as condições para analisar o que é bom para si e o que não é. Quando não se sabe, as sombras passam a ser a única realidade pensável, donde não há porque questionar. Sem libertar, não há como construir o filósofo, o homem pensante, autônomo, sujeito de seu destino. A força da libertação faz a sociedade se manifestar. Primeiro como quem é tocado na ferida, ou precisa movimentar os membros há muito tempo imóveis. Disso provém a rejeição, a repugnância, um murmúrio de incompreensão. Mas o educador-filósofo-libertador conhece esse processo e força, e se esforça até que na porta da caverna, o educando se encante pelas coisas vistas à luz do sol do conhecimento e encaminhe-se para chegar ao verdadeiro conhecimento.

Sabemos que Platão foi um grande educador e inovador dos princípios educacionais. Sua reflexão no Mito da Caverna parte da experiência enquanto discípulo de Sócrates, político e mestre em Atenas, fundador de uma escola.  Sem dúvida, a figura do mestre lhe é muito cara. Hoje em dia, o educador continua sendo figura essencial para a sociedade, porém, muitas vezes não reconhecido como tal. Ser educador é antes de tudo colocar-se no caminho da libertação, sair da caverna. É, também, despojar-se do orgulho, não ficar no monopólio do conhecimento, da prepotência que desconsidera a capacidade de ascensão de quem continua nas regiões mais obscuras da sociedade humana. É ter coragem de descer para convencer os aprisionados a caminharem rumo à luz verdadeira, que se encontra fora das imagens projetadas e além da caverna. Para isto precisará ter argumentos bem formados, embasados não em outra coisa, a não ser a realidade da prisão, que ajuda a traduzir a mensagem e a realidade da verdade, da beleza, do Bem que se encontra na liberdade.

 Seria ingênuo concluir que cada educador imbuído dos princípios pedagógicos, éticos, sociais e educacionais platônicos precisasse carregar todo o fardo da libertação social. São eles protagonistas e o precisam ser cada um por sua vez, particularmente, mas também na unidade de todos que tem a mesma profissão, os mesmos desafios e metas. No entanto, a sociedade como um todo, em especial, os governantes, devem caminhar na mesma direção, do contrário, fica muito difícil, já que há uma profunda ligação entre todos os setores sociais.  A questão talvez seja: quem começará este movimento? Restringindo-nos ao nosso tema afirmamos: não há dúvidas na explanação mitológica de Platão: é o filósofo que assume a missão da educação, aquele que é ao mesmo tempo educador-filósofo-libertador. Livres todos se tornam filósofos, educadores e libertadores. Lembremo-nos do que propôs Platão: cada qual tem sua função específica na Polis, mas todos convergem para o bem e para isso precisam estar desamarrados das imperfeições do espírito corruptor presente em tantos setores da sociedade e da própria existência humana. O educador precisa ter claro qual educação liberta, e que tipo de pensamento educacional conduz à luz do conhecimento verdadeiro.

A educação que liberta, numa ponte entre, Platão e pensadores contemporâneos, é aquela que compreende o homem como ser humano e não como instrumento. É aquela que visa o bem individual da pessoa e o bem comum a toda sociedade. É aquela que aposta no educador, que o ampara e o forma para lidar com as intempéries da profissão. É ainda aquela que acredita no ser humano livre, na liberdade do ser humano e no ser humano com liberdade. Uma educação que cuida, orienta, corrige, denuncia, aponta horizontes e se orgulha do que faz. Que tem paciência, que é determinada nas opções que faz, que respeita os diferentes processos, que é autônoma e responsável. A educação que liberta é aquela que ama a verdade e a sabedoria e na dialética expressa seu interesse não em transmitir informações pura e simplesmente, como quem leva conhecimento. Não. É aquela que ouve, interroga, mostra possibilidades e incoerências, que se lança ao desafio de não monopolizar a verdade, pois a verdade última é o educando que alcança e não o educador que lhe alcança. Na Alegoria, o sol é distante, jamais o liberto poderá tê-lo nas mãos. A educação que liberta não tem a prepotência de ser dona do saber, mas de ser condutora. Por isso tem na dialética um modo bem explícito do caminho ascendente à luz. Educação que liberta se preocupa com a realidade e a interpretação da realidade por parte do educando, a fim de lhe trazer libertação, desamarrá-lo de toda algema cultural, estrutural social que o aprisiona.

Com Paulo Freire, o educador que evidenciou o tema da educação como libertação, no Brasil, compreendemos de modo mais palpável a proposta do livro VII da República. Platão interveio na sociedade de seu tempo com sua proposta filosófica educacional. De fato, a missão da educação libertadora é intervir na sociedade, como sugere Freire. Não há outro lugar para a educação mostrar sua face libertadora, que não a sociedade. Por essa necessidade de intervenção, como também Platão descreveu no Mito, o educador há de enfrentar muitas dificuldades, por isso deve estar imbuído de seu ideal a tal ponto, que enfrenta os adversários e as dificuldades do caminho. É criativo e parceiro dos educandos. Aprende e ensina, ensina e aprende. Constrói no conhecimento. Instiga à libertação ao libertar. Constrói o conhecimento, proporcionando que o próprio aprendiz interprete a informação e forme dentro si uma concepção própria. Platão acreditava que o conhecimento é um desprendimento da caverna cheia de aparências, para a construção da própria verdade, que de alguma forma era a verdade da Polis. Freire crê que é da educação bancária e condicionadora, aquela que leva o educando a acreditar em fantasias ou acomodar-se, desistindo de sua autonomia e amoldando-se aos ideais das partes opressoras da sociedade que deve se libertar o sistema educacional brasileiro. Romper com essa situação é trazer esperança, fomentar de novo utopia. Libertar pela educação é quebrar os grilhões do conformismo, da ignorância, da manipulação e só assim existirá a educação que liberta. Formar pessoas que vêem mais do que aquilo que se põe à sua frente, que cruzem a fronteira da fogueira da caverna, que saibam discernir entre uma situação e outra deve ser a proposta de toda séria educação.

            Não pretendemos, de forma alguma, esgotar o assunto sobre este tema, tão vasto, amplo e rico. A educação que liberta pode ser vista de várias formas, em muitos autores e numa vasta quantidade de obras. Quisemos trazer Platão e, em especial o Mito da Caverna apresentado no Livro VII da República, por nos parecer tão adequado ao momento presente e do qual tínhamos alguma segurança para discorrer. Provavelmente algum aspecto possa nos ter escapado, afinal Platão e o Mito da Caverna, associados à educação com viés de libertação tem um alcance, uma abrangência do qual não podemos ter ideia, justamente por estarem suscitando reflexões, a todo momento, em alguma parte do mundo. Porém, os que aqui apresentamos como reflexão, segundo o Mito da Caverna, pretende tornar clara essa visão de educação como libertação, e de que não é qualquer educação que liberta, mas somente aquela que possibilita o caminho à verdade, ao conhecimento das coisas como realmente são.



[1] “As palavras ‘Educação’ e ‘Educar’ provêm do latim ‘Educare’, palavra aparentada com ducere, ‘conduzir’, ‘levar’, e educere, ‘tirar de’, ‘retirar’, ‘criar’. Educare tem o sentido de ‘criar’, ‘alimentar’, ‘ter cuidado com’, ‘instruir’. Parece-me que o termo latino é uma tradução do grego, paideu/w, ‘instruir’, ‘educar’, ‘formar’, ‘ensinar’, ‘formar a inteligência, o coração e o espírito de’.” (FREIRE, 1941-1942, p.2029).
[2] Apresentação da edição da Editora Globo na coletânea Diálogos em 1964. PLATÃO. A República. Traduzido por Leonel Vallandro. Rio de Janeiro: 1964.

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