A Justiça na República de Platão

 

        A República é uma das clássicas obras do filósofo Platão, sendo considerada sua obra-prima e como que a summa de seu pensamento filosófico.O problema central de que ela parte, é o da justiça. E deste tema, passa para o da estrutura de um estado bem construído que será então a República - o estado ideal, o reino do espírito da razão, dos filósofos, em chocante contraste com os estados e a política deste mundo. Pode-se constatar que a proposta desta obra é a constituição de um estado perfeito. A pergunta – qual a essência da justiça? - vai sendo respondida no diálogo, à medida que seus participantes (entre eles aquele que é principal: Sócrates) vão traçando, com objetividade, a forma como ela se configura na sociedade. No presente artigo, conceituaremos a justiça na obra “A República” demonstrando como é ela virtude essencial na constituição do Estado perfeito de Platão.

A Justiça na República de Platão
           
      Vários são os temas tratados na República de Platão, constituindo uma riqueza incalculável, que permanece viva e cativante nos séculos que lhe sucedem. A justiça é um deles.
De modo geral nos escritos de Platão há três espécies de justiça: a relativa aos deuses, a relativa aos homens e a relativa aos mortos. As pessoas que sacrificam de conformidade com as leis e cuidam dos templos são obviamente piedosas em relação aos deuses; as que pagam os empréstimos e restituem os depósitos comportam-se corretamente em relação aos homens; e finalmente as que cuidam dos túmulos são obviamente justas para com os mortos. Sendo assim uma das espécies de justiça se relaciona com os deuses, outra com os homens e outra com os mortos. Mas o que, considera Platão como Justiça em sua obra “A República”?
           À medida que se vai adentrando e conhecendo esta bela obra dialética, percebe-se que o autor sempre demonstrou estar ciente de que os argumentos que sustentam suas afirmações não pretendem e nem representam a verdade última e definitiva, pois esta era velada pelas distorções da visão humana, isso se dá no caso também do conceito de justiça. O que em primeira vista se pode claramente entender é que a justiça em“A República” é vista como maior das virtudes por considerar o outro, uma vez que é objetiva e a única que se liga ao estado. Mas os conceitos e conclusões vão além nesse assunto e consideram que a justiça é virtude que ultrapassa a lei da Polis (legislação), implica em buscar o justo além do costume. No fim de tudo está o bem-estar de todo um povo que constitui a Pólis, sem ser prejudicial àquele que a pratica. A justiça se pode definir melhor no Estado que no indivíduo, sendo, no entanto iniciada por uma atitude interior, como podemos compreender neste fragmento:
- Na verdade, a justiça era qualquer coisa neste gênero, ao que parece, exceto que não diz respeito à atividade externa do homem, mas à interna, aquilo que é verdadeiramente ele e o que lhe pertence, sem consentir que qualquer das partes da alma se dedique a tarefas alheias nem que interfiram umas nas outras , mas depois de ter posto a sua casa em ordem no verdadeiro sentido, de ter autodomínio, de ser organizar, de se tornar amigo de si mesmo, de ter reunido harmoniosamente três elementos diferentes, exatamente como se fossem três termos numa proporção musical, o mais baixo, o mais alto e o intermédio, e outros quaisquer que existam de permeio, e de os ligar a todos, tornando-os de muitos que eram, numa perfeita unidade, temperante e harmoniosa, só então se ocupe ( se é que ocupa) ou da aquisição de riquezas, ou dos cuidados com o corpo, ou de políticas ou de contratos particulares, entendendo em todos esses casos e chamando justa e bela a ação que mantenha e aperfeiçoe estes hábitos, e apelidando de sabedoria a ciência que preside a esta ação; ao passo que denominará injusta a ação que os dissolve a cada passo, e ignorância a ação que a ela preside.
- Dizes a inteira verdade, caro Sócrates. (Platão)[1]
          Para encontrar o que é a justiça e mostrá-la a seus interlocutores no diálogo, Platão usa a premissa básica consistindo no fato de que uma República bem organizada (onde cada um faz a sua parte em benefício de todos – ‘um por todos e todos por um’) deve ser chamada de sábia, corajosa, sensata e justa. Depois procura saber como essas qualidades se aplicam à República e se da mesma forma podem se aplicados aos indivíduos.
Creio que a nossa cidade, se de fato foi bem fundada, é totalmente boa.
— É forçoso que sim.
— É, portanto, evidente que é sábia, corajosa, sensata e justa.
— É evidente.
— Repara então neste ponto, a ver se manténs a tua opinião. Vais incumbir os chefes da cidade de administrar a justiça?
— Sem dúvida.
— E eles, nos seus julgamentos, acaso pretendem qualquer outra coisa de preferência a isto: evitar que cada um detenha bens alheios ou seja privado dos próprios?
— Não; é isso que eles pretendem.
— Considerando que é uma coisa justa?
— Sim.
— E deste modo se concordará que a posse do que pertence a cada um e a execução do que lhe compete constituem a justiça.
— Sim.[2]
Vários estudiosos buscam oferecer uma resposta sintetizada a respeito do conceito de justiça, ou melhor, a idéia de justiça que aparece na República, e que nesse trabalho se encontram espalhada em vários parágrafos. Agora, porém, citamos dois autores e suas respectivas sínteses no referente ao assunto, a saber P. Marcos Sandrini e W. Jaeger.
A justiça nada mais é do que a harmonia que se estabelece entre três virtudes, a temperança (lavradores, artesãos e comerciantes), a fortaleza ou a coragem, (guardas) e a sabedoria (governantes). Quando cada cidadão e cada classe social desempenham as funções que lhes são próprias da melhor forma e fazem aquilo que por natureza e por lei são convocados a fazer, então realiza-se a justiça perfeita. Existe, portanto, uma justiça perfeita entre as virtudes da Cidade e as virtudes do indivíduo.[3]O conceito platônico do justo está acima de todas as normas humanas e remonta sua origem na alma mesma. É na natureza mais intima desta onde deve ter seu fundamento o que o filósofo chama o justo.[4]
A justiça platônica reside, antes de tudo, na alma humana como sua qualidade essencial e critério do melhor e mais feliz tipo de vida ao homem. Em “A República” esse pensamento está relação com as demais virtudes da cidade e as funções realizadas pelos cidadãos, o que leva a concluir que ela é necessária para a felicidade da Polis. A mesma deve permitir e trabalhar para a existência da justiça. Na República sonhada pelo personagem Sócrates, a justiça reina, fortalece e dá razão para os cidadãos amarem sua cidade, defenderem-na e por ela se doarem. Não há questionamentos quanto as diferentes posições sociais, pois se considera justo entregar a vida e inclusive a daqueles a quem se ama a fim de que a Polis seja bem construída.

Quanto à prática da Justiça

A justiça acontece em sua prática que consiste em agir descartando o egoísmo e reconhecendo a igualdade do direito do outro, ou seja, é ação que possibilita a convivência e a vivência conjunta dos homens, definição que perfeitamente cabe na “República”, pois como já mencionado, a temática da construção de um estado está em vista. Uma cidade dispõe de vários serviços a serem realizados, e precisa de pessoas com capacidade para isto. Naturalmente, para o pensamento apresentado pelo protagonista Sócrates, existe pessoas que tendem a desempenhar com agilidade, diferentes e específicas tarefas, fator que favorece a organização da Polis. E ainda, Sócrates contrapõe-se a certas ideologias (especialmente apresentadas no personagem do sofista Trasímaco) refutando a identificação da justiça com a vontade e o desígnio do mais forte, quando focaliza o fato de que cada coisa possui uma função própria. Sejam os instrumentos de trabalho, os animais ou os órgãos dos sentidos, cada um possui uma virtude própria, que o possibilita executar da melhor maneira sua função específica (por exemplo, a afiação da navalha, a visão aguda dos olhos etc.). Não escapa à regra a alma do homem. Ela tem uma função, qual seja, a vida, e a excelência ou virtude que a permite levar a cabo esta função do modo melhor possível é a justiça. Quem vive bem é o homem justo, não o injusto e, por isso, é próspero e feliz.
- Mas escuta, e diz se eu digo bem. O princípio que de entrada estabelecemos que devia observar-se em todas as circunstâncias, quando fundamos a cidade, esse princípio é, segundo me parece, ou ele ou uma das suas formas, a justiça. Ora nós estabelecemos, segundo suponho, e repetimo-lo muitas vezes, se bem te lembras, que cada um deve ocupar-se de uma função na cidade, aquela para a qual a sua natureza é mais adequada.
— Dissemos isso, sim.
—Além disso, que executar a tarefa própria, e não se meter nas dos outros, era justiça. Essa afirmação escutamo-la a muitas outras pessoas, e fizemo-la nós mesmos muitas vezes.
— É verdade.
— Logo, meu amigo, esse princípio pode muito bem ser, de certo modo, a justiça: o desempenhar cada um a sua tarefa. (PLATÃO)[5]

Essa idéia não é nenhuma novidade, já foi sugerida no diálogo Górgias e tem importância capital. “A concepção de justiça é apresentada muito diferente de outras, pois Sócrates explica a justiça como aquela virtude pela qual qualquer ser humano será levado ao tipo de vida que maximizará seu maior bem.”[6]

A Justiça e a Felicidade do Homem
          Platão defendeu a justiça como a virtude por excelência, seja para o indivíduo seja para a sociedade, insistindo dialeticamente que o homem justo é também feliz. Sendo assim, essa virtude está ligada à felicidade de cada cidadão e não é um peso ou resultado da incapacidade e medo do seu contrário – a injustiça. Identifica-se com clareza tais pontos em interrogações que podem ser sucintadas em: A justiça é melhor que a injustiça? De que forma? E quem é mais feliz, o homem justo ou o injusto?
Diremos que não seria nada para admirar se estes homens fossem muito felizes deste modo, nem de resto tínhamos fundado a cidade com o fato de que esta raça, apenas, fosse especialmente feliz, mas que o fosse, tanto quanto o possível, a cidade inteira. Supúnhamos, na verdade, que seria numa cidade desta espécie que se encontraria mais a justiça; e na mais mal organizada que, inversamente, se acharia a injustiça; observando-as, determinaríamos o que há muito estamos a procurar. Ora, presentemente estamos a modelar, segundo cremos, a cidade feliz, não tomando à parte um pequeno número, para os elevar a esse estado, mas a cidade inteira. (PLATÃO) [7]
Sendo atitude interior, só pode fazer parte da própria natureza humana, ou seja, é algo nato e sem estranheza para o homem. A alma do homem, essencialmente aquilo que ele é, sem deturpações, para Platão foi criada para atingir esse estado de harmonia que é a justiça. Uma alma justa é uma alma saudável. A justiça é a beleza, o bem-estar da alma, é a saúde; a sua enfermidade é o vício é, fealdade e fraqueza. Isso basta, certamente, para deixar clara a superioridade da justiça em relação à injustiça, e o fato de que é daquela, jamais desta, que se deve esperar a felicidade verdadeira. Enfim, definida a justiça como harmonia e ordem interna, a felicidade do justo consiste na conquista e conservação dessa harmonia, a qual, nos rigores da moral socrático-platônica, não sofre maiores interferências de fatores externos.
Platão também analisou como seria o comportamento do homem justo e do homem injusto para se chegar a descrever suas virtudes, e a tipologia das almas, a fim de determinar uma postura ética que direciona o homem para a conquista da sua felicidade dentro de suas aptidões constituindo por fim um estado justo e perfeito – A República. É considerado injusto aquele que transgredir as leis estabelecidas na cidade deixando se dominar pela cólera e pelos desejos, enquanto o justo é dominado pelo racional, que o leva a concordar com a função naturalmente cabida a ele na sociedade.
 
Conclusão

           Não resta dúvida que justiça é o elemento essencial para a constituição do Estado perfeito expresso pelo personagem Sócrates em “A República” de Platão. O Estado idealizado por Sócrates só existirá se a justiça habitar plenamente nela, assim como em cada indivíduo que a ela pertence. Por considerar o outro, uma vez que é objetiva e a única que se liga ao estado, é vista como maior das virtudes, sendo indispensável para o bem do estado, que ainda buscará manter tal virtude por meio de leis que só serão justas se forem estabelecidas por pessoas (filósofos) que praticavam a virtude da justiça, e por isso, contemplam a própria idéia de justiça. Da mesma forma uma cidade será justa quando governada pelo elemento racional, ou seja, por uma classe de pessoas que sejam assim. O grande bem na vida da Polis é a justiça, por isso é necessário que as pessoas vejam a justiça como um bem em si mesmo. Então ela terá ocupado o seu verdadeiro lugar e terá a força necessária para a ordem, uma vez que reconhecida pelos cidadãos, não havendo inversão de valores e tarefas na organização social, isto é, cada um realizando aquilo que o dotou a natureza.



[1] PLATÃO. A República. Traduzido por Leonel Vallandro. Rio de Janeiro:Editora Globo, 1964., p.140.
[2] PLATÃO. A República. Traduzido por Leonel Vallandro. Rio de Janeiro:Editora Globo, 1964., p.121.
[3] W. Jaeger, Paidéia: los ideales de la cultura griega. Trad. J. Xirau e W. Roces. México: Fundo de Cultura Econômica, reimpressão 1996, p. 594.)
[4] SANDRINI,Marcos. História da Filosofia Antiga. Viamão, 2009.
[5] PLATÃO. A República. Traduzido por Leonel Vallandro. Rio de Janeiro:Editora Globo, 1964., p.128.
[6]N. D. Smith. Some thoughts about the origins of “greek ethics, Journal of Ethics, 5: 3-20, 2001, p. 12
[7] PLATÃO. A República. Traduzido por Leonel Vallandro. Rio de Janeiro:Editora Globo, 1964., p.112.

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