A Revelação na Constituição Dogmática Dei Verbum


Penso na seguinte cena: um simpático velhinho caminhando a passos lentos pela calçada de uma movimentada rua, levando uma bolsinha pendurada na mão. Seu netinho saindo da escola avista o vovô e vai correndo em sua direção. Alcança o avô, dá-lhe um beijo e pergunta sobre o conteúdo da bolsa. “É um filme fotográfico, meu filho” responde o velhinho, acrescentando: “estou levando para revelar”. “E o que é revelar, vovô?” Indaga o menino. “É mostrar algo que está gravado aqui dentro, que está escondido, que a gente ainda não consegue ver, mas que pode se tornar conhecido desde que a gente o leve para alguém revelar. Essa pessoa não vai inventar nada, não vai criar, apenas vai mostrar o que está ali, pronto para ser visto.” E a criança, descontente com a resposta, pergunta: “então revelar é mostrar uma pessoa real?” certamente o avô responderia: “Não. É apenas uma imagem, mas nunca a totalidade da pessoa. É uma recordação que faz a gente desejar ainda mais quem se ama. É um pouco melhor do que as imagens que já foi possível ao homem ter, mas muito distante ainda da presença real de alguém”.
           
         As máquinas fotográficas anteriores às digitais popularizaram um termo entre o vulgo: revelação. Quase todo mundo já fizera esta experiência: fotografar, ser fotografado e esperar o tempo da revelação. Quando revelada, as imagens mostravam o fato, o ato, mas nunca o todo. Assim ficava para quem sabia contar a história ou para a imaginação a construção da verdade acerca daquela fotografia revelada.
 
Revelação: deixar aparecer, tirar o ver, deixar mostrar-se. O ser humano porta-se em si o mistério de um esconder-se, de um reter-se, mas ao mesmo tempo uma capacidade de comunicar, de dar-se a conhecer, revelar-se. É um fluxo intenso que nunca se esgota. Um grito silencioso e silêncio gritante. Um raio de luz dentro do eclipse de suas incógnitas. Alguém que sabe e deseja dar de si, mas que também deseja insaciavelmente receber. É este ser que fala em “revelação”. Não fala de qualquer jeito, fala buscando o sentido de sua existência, das razões e dos mistérios que o envolvem. Pergunta-se por Deus e por que Deus age da forma que age. Pergunta-se pela sua fé e com as perguntas que só a fé pode suscitar.

No presente trabalho abordaremos, a partir da Constituição Dogmática Dei Verbum, a Revelação. Trataremos de sua origem, a definiremos contextualizando-a dentro do grande acontecimento do Concílio Vaticano II e observaremos suas propostas. Depois apresentaremos um resumo de seus capítulos e, por fim, tentaremos iluminar a atualidade com as reflexões deste Documento de suma importância na Igreja.

A Revelação na Constituição Dogmática Dei Verbum fala de Deus que se faz amigo da humanidade e lhe comunica sua Palavra na história, é Palavra que se faz história na humanidade de Jesus Cristo e permanece na história através da Palavra lida, interpretada, celebrada e assumida pelos que creem.  Revelação divina manifesta-se como Palavra de Deus: palavra nas Escrituras Sagradas, na Tradição e no Magistério Apostólico.

Em todos os tempos é Deus quem tem a iniciativa, pois ele é o Deus do amor. Nós, seres humanos, temos a necessidade de Revelação. Sendo assim a Palavra de Deus entrelaça-se com nossa história e comunica-nos todas as verdades para nossa salvação. À Igreja como Sacramento de Cristo, transmite para todas as gerações esta Palavra, interpretando-a e atualizando-a para o homem, segundo o Espírito Santo e em Conformidade com a Sagrada Tradição.

Jesus Cristo como plenitude da Revelação permanece para sempre a Palavra por excelência. Foi Ele quem nos revelou o rosto do Pai e nos desafiou a ser como o Pai (Mt 5, 48). Mas há um tanto de mistério que convoca-nos a fé. A revelação de Deus é uma relação que nos faz compreender a verdade, mas jamais nos permite tê-la toda, nem poder explicá-la de modo satisfatório, muito mesmo toma-la como propriedade. Deus se dá e se retém. Sua palavra é plena, mas nossa compreensão limitada. Talvez sua palavra seja construtora e o mesmo tempo construção. Deus constrói através de sua palavra ou, como relembra o Gênesis, cria. Na construção não vemos o todo e quando o todo está pronto, não vemos os alicerces, nem os ferros, nem os materiais que ficaram no interior da obra. Na criação de uma arte, por exemplo, a beleza se dá por este evidente que evidencia o não evidente. E a Revelação pode ser tateada por expressões como estas.

Vem-nos à memória o jardim japonês do templo Ryoanji (Templo do Dragão Pacífico). Este jardim é formado por um retângulo forrado com cascalhos brancos onde, estrategicamente, existem 15 pedras de vários tamanhos dispostas em trios. De qualquer ângulo de visão apenas quatorze pedras são vistas; a décima quinta nunca é vista[1]. Se comparamos à Revelação, temos uma metáfora apropriada. No jardim da fé temos os pressupostos da Tradição, do Magistério e da Sagrada Escritura e cremos serem verdadeiros, mas nunca chegamos a ter a plena certeza de tudo, nem monopolizar a verdade, porque ela se mostra diferente ao mundo, dependendo dos pontos de vistas e dos ângulos da existência.

Assim, utilizando-se de nossa ilustração, a Revelação, segundo a Dei Verbum, convoca-nos à humildade: nenhuma religião enxerga tudo, nem um homem ou mulher pode dizer onde estão todas as pedras deste mistério. É preciso caminhar pelo jardim para ver todas as pedras, uma por vez, quatorze em outras, jamais quinze. É na relação com a simetria do templo e do jardim que cada pedra vai se mostrando e se escondendo. Assim, no caminho, novas certezas se mostram, ao passo que outras se retém. O diálogo universal que a Revelação convoca implica fé: fé na palavra do outro, fé no jardim, fé na lenda.

Assumindo o risco de dar-se a mal interpretar, ousamos dizer que a Dei Verbum conta-nos deste jardim ao falar da Palavra de Deus e da Revelação. Os desafios ficam como instigação aos apaixonados por este mistério que dá sentido ao jardim universal chamado vida. Quem tem um porque encontra um como, assim dissera Victor Frankl. O como neste assunto, exclui fundamentalismos, porque a última palavra fica por conta da graça divina que se dá a conhecer e se relaciona com a humanidade no individual de cada consciência e no comunitário enquanto força do Reino. Quem quiser dizer o que é Revelação fica obrigado a percorrer todos os ângulos do jardim. A Dei Verbum exige formação, ensina a ouvir a Tradição, o Magistério, a Sagrada Escritura e mostra que um ângulo do jardim é ponto de partida para outro.

Por fim, voltamos ao nosso diálogo entre avô e neto. Assim como o jardim japonês do templo Ryoanji é uma fotografia do que quiséramos dizer aqui, tudo o que insistirmos em dizer sobre Revelação também o será. No entanto, entre tantas fotografias sobre este tema, a Dei Verbum parece-nos ser a mais autêntica, a que mais mostra aspectos essenciais desta misteriosa relação entre Deus e nós. O Divino Revelador no-la presenteou dentro do grande dom que foi o cinquentenário Concílio Vaticano II.

 



[1] Segundo a crença local, a décima quinta pedra só poderá ser vista por quem atingir a iluminação.

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